O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

22.2.06

Hoje respondi a uma chamada da Rádio Táxis, no Hotel Continental. Dirigi-me à Avenida 5 de Outubro, onde me aguardava uma senhora idosa que se movia com dificuldade. Ajudei-a a entrar no táxi, «corrida» curtíssima, foi só atravessar o quarteirão até junto dos correios da Avenida da República. A senhora era muito simpática, dei-lhe o braço e ajudei-a a subir as escadas até ao elevador. Não custa nada! Apenas cumpri o meu dever... Taxista também presta serviço público!

***

É uma daquelas pessoas «azedas», zangadas com a vida. Lá terá as suas razões... Na viagem até à Av. Infante Santo não parou de me azucrinar os ouvidos. Contou-me que um taxista a deixou na Calçada de Carriche, recusando-se a levá-la a uma localidade próxima de Loures. «Veja bem!» Disse-lhe que uma andorinha não faz a Primavera, mas a pensar no que teria sucedido ao pobre taxista para se recusar a fazer um bom serviço fora de Lisboa... A paciência também tem limites! Por mim, se a viagem continuasse, tenho a impressão de que lhe oferecia a «corrida» só para me ver livre daquela criatura quadrada...

19.2.06

Lisboa acordou com chuva intensa e forte ventania. Aos domingos gosto de começar bem cedo. Faço o Lux, a seguir dou um salto à 24 de Julho. Às nove da manhã ainda há gente a sair do Kremlin... Tomo o pequeno-almoço, depois dirijo-me à Feira do Relógio, onde os nossos patrícios africanos marcam presença.
Ainda sou novo nesta vida de «fogareiro». Aos poucos, vou descobrindo a melhor forma de trabalhar. É preciso sentir o pulsar da cidade. Não dispenso a agenda cultural, tento estar atento a todos os eventos. Os hotéis também são muito úteis. Hoje, por exemplo, decidi «abancar» no Hotel da Lapa, um palacete muito bonito situado numa das zonas nobres de Lisboa. Perdi algum tempo (aproveitei para pôr a leitura em dia), mas ganhei dois bons serviços.

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Já não há distâncias. Através da Internet, descobri um blog muito interessante, o Taxitramas, do brasileiro Mauro Castro (Porto Alegre). Enviei um mail, já obtive resposta. Sei que visitou «o fogareiro» e envio-lhe um forte abraço. Um dia, quem sabe?, talvez nos cruzemos... em Lisboa ou... em Porto Alegre!

17.2.06

Taxista do pedal

O dia amanhece abafado. São sete horas e o termómetro já passa dos 25 graus. Saio sonolento pelas ruas de Porto Alegre, resultado de uma noite às voltas com os mosquitos. Será um dia longo e quente.
Em Londres, a essa hora da manhã, meu amigo Thiago, com certeza, já pedala pelas ruas geladas da capital inglesa – a temperatura lá anda girando em torno de zero graus. Quase o invejo. O Thiago é filho de uma vizinha minha. O guri foi para Londres num programa de intercâmbio cultural. No exterior, não conseguindo coisa melhor, acabou aceitando um emprego subalterno, destes reservados a imigrantes: taxista.
Na verdade, em Londres, os taxistas são muito respeitados. Operam um dos serviços de táxi mais prestigiados do Mundo. Meus colegas londrinos passam por um processo de seleção rigoroso antes que possam exercer a profissão. Para brasileiros recém-chegados, como o Thiago, sobram as vagas de biketaxi: taxista de bicicleta.
Um dia destes, conversando com o Thiago pela Internet, ele me falou da rotina puxada ao pedal. As bicicletas são adaptadas para transportar dois passageiros. É preciso força física e destreza ao guidão. Mas o trabalho ajuda a aprimorar o idioma e a bancar as despesas, além de atenuar o frio e a saudade de casa.
Enquanto isso, por aqui, só no meio da tarde eu consigo parar para almoçar. Resolvo fazer apenas um lanche – com esse calor infernal, a fome vai para o espaço. Enquanto decido o que comer, imagino o Thiago em Londres, com a bicicleta encostada, tomando o chá das cinco para esquentar os ossos. Trichique! Decido tomar um guaraná bem gelado. Para acompanhar, peço um bolo. Inglês.

Mauro Castro, in blog «taxitramas»

16.2.06

Acordei tarde, a manhã esteve chuvosa, Lisboa cinzenta e o trânsito caótico. Cometi um erro ao ficar na praça do aeroporto (partidas). Devia ter regressado à «pedreira», assim afundei-me durante uma hora. Cheguei a uma conclusão: o aeroporto é para os donos dos táxis, não para quem tem de chegar ao fim do dia e apresentar uma «folha» decente.
Aeroporto-Alfragide. Segunda Circular intransitável, regresso pela Buraca, nunca mais saio da praça de táxis, sigo para a Estrada de Benfica, até à Praça de Espanha sem alguém me fazer sinal. Decididamente, um dia para esquecer. Quando assim acontece, já conheço a receita: não forçar a nota nem desesperar – arrumar o carro, almoçar e descansar uma horinha para regressar com a cabeça limpa.
Amanhã é novo dia, novas «corridas», mais um dia infernal de trânsito, como são todas as sextas-feiras.

15.2.06

Artur, o taxista romântico

Tem 50 anos bem conservados, é solteiro e bom rapaz. Mas disponível, só está mesmo o seu táxi quando não transporta ninguém. É verdade que com um simples bombom ou uma vela aromática, entre outros «mimos», Artur procura «conquistar» aqueles com quem estabelece empatia durante uma corrida pelas ruas da capital. Mas por «pura maneira de ser. Sem segunda intenção».
É assim em todas as quadras natalícias e pascais, bem como no Dia Internacional da Mulher. Mas não o é nem «jamais será no Dia dos Namorados». Nesta data que considera «muito especial», as prendas «devem ser partilhadas entre o casal. Um forasteiro não deve intrometer-se».
Este «forasteiro», que se ganhasse o euromilhões dedicar-se-ia exclusivamente às causas humanitárias, não pode dar-se ao luxo de parar de trabalhar para exercer «essa nobre missão». E é precisamente no seu local de trabalho, o táxi, que procura ser solidário, dia após dia.
Com a Classe FM ou a Antena 2 sempre sintonizadas, é através da música clássica ou do jazz que «transporta» o passageiro - para ele a palavra cliente não existe - para outra dimensão. Como no início do namoro, também aqui a música marca a diferença na relação que se estabelece entre duas pessoas.
«Há quem prefira ir calado. A saborear a música. Outros encontram neste ambiente acolhedor e inesperado o local ideal para desabafar», conta Artur, revelando toda a sua sensibilidade para com quem se sente carente. O sorriso sempre nos lábios e o olhar atento no espelho retrovisor convidam à confidência.
E é no Natal e na Páscoa que as sensibilidades mais se manifestam e a carência mais aperta. Artur, pelo menos, pensa assim. Daí ter surgido a ideia de, nessas datas, dar algo a quem, por um motivo ou outro, lhe toca o coração. Um acto que já lhe proporcionou «uma boa carteira de passageiros e sobretudo de amigos». E de namoradas? «Não, isso nunca aconteceu.»

(«Diário de Notícias», 14 de Fevereiro de 2006)

Nota-se-lhe um brilhozinho nos olhos. Foi avó pela primeira vez, fala-me do netinho acabado de nascer na maternidade do Hospital de Santa Maria. Pedro de seu nome, nasceu no dia dos namorados. «Foi a melhor prenda que a minha nora podia oferecer ao meu filho», comenta a avó babosa, na viagem até Benfica, depois de visitar o bebé.
Na hora de pagar a «corrida», a avó não quis troco. Disse-me que era para beber um copo à saúde do neto. Assim seja! Ergo a taça e o desejo de que o Pedro seja um «puto» muito feliz. E que aquela avó simpática e ainda jovem viva muitos anos para ver o neto crescer.

14.2.06

Entram no Lux, às sete e tal da manhã. Ela fica nas Olaias, eles seguem para a pastelaria Luanda, na Av. Estados Unidos da América. Conheceram-se na discoteca, vêm um pouco eufóricos. É natural!
Sigo viagem e às tantas, já na Praça do Continental, reparo que está uma carteira no banco de trás. Espreito apenas o BI, é de um dos clientes anteriores. Arranco a todo o gás (àquela hora de domingo não há trânsito), dirijo-me à pastelaria Luanda e lá estão eles, na esplanada, a tomar o pequeno-almoço. Ainda não tinha dado pela falta...
Fiquei contente, por ter chegado a tempo de devolver a carteira.

11.2.06

Quando estou a falar com alguém, intensamente, detesto que terceiros (aqueles que não fazem parte do círculo inicial) me interrompam. De facto, fico enraivecido quando o fazem.
Ultimamente ando mais susceptível a esta transgressão, talvez porque todos os momentos sociais que arranjo são de ouro.
Um dos indivíduos que mais detesto é o empregado de mesa. Tem a mania de que é preciso quando não é, e não se encontra em lado algum quando é.
Odeio o taxista, quer vá sozinho ou acompanhado. Gostava de saber quem é que lhe disse que estou interessado em falar com ele ou em ouvir as suas opiniões do estado actual da sociedade. E, claro, também tem a mania de interromper conversas com sugestões, como se o conhecesse de algum lado.
Detesto o patrão. Se estou a falar muito bem com o(a)s colegas, tem a mania de chegar nos momentos mais inconvenientes (a meio de fortes gargalhadas) e começar a distribuir trabalho.
Detesto os vizinhos (as vizinhas boas escapam...), que têm a mania de nos cumprimentar quando nos vêem na rua, especialmente se estivermos a conversar com outra pessoa. Não bastaria um simples aceno? Um «olá» mudo à distância? Aparentemente não! Têm de vir dar o ar da sua graça e interromper-me!
Estas criaturas irritantes desconhecem as regras de contacto com seres humanos. Qualquer dia passo-me da carola e dou uma valente sova numa delas...

André Cardoso, in blog «Vozes da Revolta»

9.2.06

Lisboa acordou cinzenta e com salpicos de chuva. Melhor para os taxistas! Comecei bem e às 11 horas já tinha quase meia «folha». Paro na praça da 5 de Outubro. Àquela hora, costumam cair muitas chamadas da Rádio Táxis. Estou em primeiro lugar, entram dois clientes, um português e outro espanhol. «Leva-nos a Setúbal?!»
Clientes simpáticos, mas embrenhados nos seus negócios. Quase não deu para estabelecer diálogo. Tenho por hábito não incomodar as pessoas, quando estas aproveitam a viagem para trabalhar. Já aqui contei a estória de uma professora que preparou a aula no interior do táxi. No final, agradeceu-me pelo facto de não a ter importunado.
Praça do Bocage. Deixo os clientes e vou estacionar o táxi. Sei que tenho duas/três horas de espera, antes de prosseguir viagem para Alcochete. Gosto de Setúbal e em especial da Praça do Bocage e da Avenida Luísa Todi. Decido percorrer aquela zona histórica da cidade do Sado. Escolho uma «tasquinha» para almoçar. O peixe ainda cheira a mar... Aguardo pelos meus clientes na Praça do Bocage, onde tomo mais um café e leio a «Visão». A OPA da SONAE sobre a PT está na ordem do dia...
Nova corrida até Alcochete, mais uma horinha de espera e regresso a Lisboa. Um dia diferente nesta vida dura de «fogareiro», sem o «stress» do trânsito frenético da capital...

O meu cliente tem 80 anos e ainda não deixou de trabalhar (se o eng. Sócrates sabe disto... aumenta ainda mais a idade da reforma!). Tem uma loja na Baixa, vive em Sintra e vem todos os dias de comboio até Sete Rios, depois apanha um táxi para o Rossio. «Se fico em casa, enlouqueço... Não que faça muito lá na loja, mas como sei onde estão todas as coisas, sempre dou uma ajudinha...»
Fala-me de muitas vivências e do estado a que chegou, quase cego. Dá-me um aperto de mão na despedida: «Nota-se que é boa pessoa. Não tenha medo da vida!»
Apetece-me dizer-lhe que ando cheio de medos da vida, das «armadilhas da floresta». Mas fico a olhar aquele homem de 80 anos, ancorado na bengala, a caminhar em direcção à sua loja, na Rua do Ouro.

6.2.06

Ganarse la vida al volante

«La profesión de taxista es una de las más socorridas que existen en España. El transporte público de viajeros siempre ha proporcionado una salida laboral para muchos desempleados, independientemente de su edad y cualificación.
Sin embargo, introducirse y mantenerse en el sector del taxi se ha complicado en los últimos años debido al exceso de licencias que existen en las ciudades españolas. Mientras en Londres hay 1,5 taxis por cada 1.000 habitantes y 2,9 en París, en Madrid son 4,5 los vehículos que prestan sus servicios para la misma población.»

Mercedes Gómez

2.2.06

«Sou taxista e dirijo a minha vida»

Ainda são poucas as mulheres taxistas de Lisboa. Mulheres valentes que venceram tabus e enfrentaram uma profissão difícil. No Brasil é mais frequente ver mulheres taxistas. Como é o caso de Sónia Ferreira, de 50 anos, que guia um táxi nas ruas de São Paulo. Tudo começou há 18 anos, quando ela ficou viúva e com duas filhas pequenas. A solução foi assumir o táxi que era do marido, levando a caçula, de quatro meses, no banco de trás. Nas ruas, Sónia enfrentou preconceitos e deu um rumo à sua vida. Hoje, ela é uma das 2.300 taxistas do sexo feminino, entre os 65 mil motoristas que rodam em São Paulo. Aqui registamos, com a devida vénia, o seu depoimento:

Comecei a bancar a taxista aos 30 anos, quando meu marido, Dornélio, motorista de táxi, descobriu que sofria de hipertensão. Às vezes ele ficava internado e eu substiuía-o num ponto de Anhangabaú, em São Paulo. Eu levava os clientes fixos e no trajeto para casa fazia uma corridinha por fora, mas nem pensava em trabalhar no táxi. No dia 29 de Dezembro de 1986, Dornélio foi internado à pressa. Quando cheguei ao hospital, ele tinha morrido. Paragem cardíaca, aos 39 anos. De repente vi-me viúva, aos 33 anos, com duas filhas pequenas: a Janaína, de sete anos, e a Lígia, de quatro meses. E sem trabalho, porque tinha deixado de ser secretária quando nasceu a caçula. Fiquei perdidinha... Uma amiga cuidou do velório e eu fui passar uns dias na casa da minha mãe. Quando voltei, vi os restos do panetone do Natal na cozinha, a casa vazia, uma solidão danada. E dinheiro... nenhum! Porque taxista só tem o que ganha no dia.
Aí, foi conselho de todo lado. Uns diziam para eu vender o carro e a licença de taxista, outros falavam que era melhor vender a licença e ficar com o carro – um Passat novinho, que Dornélio nem tinha acabado de pagar. Eu não sabia o que fazer, mas no dia da missa de sétimo dia tirei o carro da garagem e fui para a igreja com as meninas. Lá, me deu um estalo: «Gente, eu tenho é que trabalhar!» Quando pedi para a vizinha me ajudar com as meninas, minha família achou que eu estava maluca, mas fui em frente.
No começo, chorei muito por causa de passageiro. Eu perguntava o caminho e era xingada. Alguns diziam que o problema era meu e que, se desse voltas, seria pior, porque eles pagariam o valor normal. Eu ia na maior tensão, com medo de não ser paga, medo do cliente me estuprar, me roubar. A Lígia ainda mamava no peito, muitas vezes eu chegava a casa e ela estava aos prantos. O jeito foi colocá-la num cestinho, no banco de trás, e levá-la junto. A gente saía às seis horas e voltava no fim da tarde. À noite, ela ficava com a vizinha. Os passageiros estranhavam quando me viam – muitos estranham até hoje – e achavam graça ao ver o bebé, mas ninguém se incomodava. Eu parava para amamentar, trocar fraldas e dar frutinhas. No bairro do Carmo tem muito pé de ameixa amarela e ela adorava. Ela foi comigo no táxi até os quatro anos, na cadeirinha. E gostava tanto que hoje, aos 18, pensa em seguir a profissão. E eu faço o maior gosto.

«Um rapaz bem vestido puxou uma faca, me fez passar para o banco do carona e disse que estávamos num cemitério de taxistas. Pensei: 'Morri!' O desespero foi tanto que abri a porta e pulei»

Sorte que ela não estava comigo quando passei por uma situação difícil, logo que assumi o táxi. Eram seis da tarde, peguei um rapaz bem vestido, que ia para São Miguel Paulista [zona leste de São Paulo]. Ele foi conversando e, quando vi, estava num lugar deserto. Ele puxou uma faca, me fez passar para o banco do carona e me mandou calar a boca, dizendo que estávamos num cemitério de taxistas. Pensei: ‘Morri!’ Apavorada, falei que estava com os peitos cheios de leite, que minha filha me esperava, mas ele disse que não tinha feito filho em mim, que não era problema dele. Meu desespero foi tanto que abri a porta e pulei. Acordei toda esfolada, com um monte de gente em volta. Fui direto para a delegacia. Na mesma noite acharam meu carro, no dia seguinte eu já estava trabalhando.
Quatro anos depois da morte do Dornélio, eu me casei com o Maguila, que também era taxista e tinha um ponto na Ipiranga com a São João. Foi bom, mas só durou cinco anos, porque ele tomou um tiro defendendo um amigo no trânsito e morreu. Resolvi que não me casaria mais. Tenho um namorado, outro taxista, há nove anos. Tem que ser taxista... Senão, sente ciúmes. Já levei muita cantada de motoristas, porque o homem admira a mulher que compete com ele sem perder a feminilidade. Eu adoro uma saia! Não dá para dirigir de salto, mas uso sandálias de plataforma. Já o passageiro não canta, fica é curioso, querendo saber da minha vida. Eu conto, gosto de conversar.
Eu amo o táxi, porque encontro todo o tipo de gente, de situação. Quando meu marido morreu, entendi como as pessoas são. No começo, os colegas dele me receberam bem, depois vi que queriam me desestimular para ficar com a nossa clientela fixa. Preferi sair de lá e fiquei quatro anos rodando na rua, até arranjar outro ponto, no Parque D. Pedro. Tenho amigos motoristas, mas ainda ouço ironias como: 'O feijão tá queimando!' ou 'Vá lavar roupa!'.
Só conheço cinco colegas mulheres. No trânsito, os passageiros me perguntam se saí escondida do marido, e ainda tem as mulheres que fazem 'não' com o dedinho quando eu páro. E não entram! Conseguem ser mais machistas que os homens. Eu levo na desportiva, a mulher tem de conquistar o seu lugar com diplomacia.
O estresse fica por conta do trânsito, mas o pior é a falta de banheiro. Já tive que pedir para usar banheiro de residência. O medo do perigo, depois de 18 anos, ficou para trás. Já bati feio, fui assaltada quatro vezes, entrei em favela, conheci bandido que morreu e trombadinha que virou bandidão. Já vi gente morrer no trânsito. Um amigão meu, o Almeida, foi assassinado depois de me perguntar, pelo rádio, quanto ficava uma corrida de Cumbica a Campinas. Encontraram o corpo dele atrás do aeroporto. Até hoje fico triste quando penso no Almeida.
Mas o que mais me choca é ver meninas novas indo para motel com homens maduros. Lembro das minhas filhas e penso: 'Será que a mãe sabe disso?' Também tenho pena das prostitutas. Elas fazem sinal, pensando que sou homem e, quando páro, muitas estão com a roupa aberta, pedem desculpas. Às vezes até dou carona. Na rua, um dia você ajuda alguém e no outro esse alguém te ajuda. Meu carro quebrou perto de uma favela, dois caras me cercando, e quem me tirou da fria foi um menino, que eu sei que é batedor de carteira, para quem dei dinheiro na feira depois de me ajudar a carregar as compras. Nesses momentos, você acha que chegou a sua hora. Mas tem de encarar. Não escolho passageiro, embora tenha medo de alguns.
Mas o táxi não é só horror, também dou boas risadas. Uma vez entraram duas mulheres e, pelo retrovisor, não vi nenhuma, porque elas estavam se agarrando no banco. Outra já entrou avisando que ia-se trocar, porque tinha que chegar em casa com a roupa que tinha saído. Os bêbados também são engraçados. Teve um que me fez parar em cada padaria do trajeto pra tomar uma pinga e achou que a corrida estava paga, porque me comprou cigarro e coca-cola. Esse eu tive que pôr para fora e tirar o dinheiro do bolso da camisa dele. Nas ruas, conheci as melhores e as piores pessoas. E vi que a madame, o bandido, cada um é um mundo, entende? A madame dá a batidinha no vidro, cheia de anéis, olha o carro com nojo e dá uma espanada no banco. Mas o pior é o executivo, que vive com pressa e acha que, porque está pagando, sou empregada dele. O dinheiro faz isso com as pessoas.

«Hoje, coordeno o meu ponto, almoço com políticos, milito no sindicato. Espero não me aposentar porque, quanto mais vivo e ando nas ruas, mais sinto o quanto a vida é linda»

Durante muitos anos, trabalhei 12 horas por dia. Hoje, trabalho 18, porque a situação está pior. Criei minhas filhas sozinha, ainda moro de aluguer. Por um ano e meio paguei R$ 1.700 por mês numa Sprinter 98, o meu carro atual. Trabalho sete dias por semana e nunca tirei férias. Às vezes passo uns três dias na casa de uma amiga, em Santos. Tenho parentes em Fortaleza, onde nasci, mas só voltei lá uma vez. Vivo num pique danado e, quando chego em casa, é para dormir, não consigo mais ficar parada vendo novela. Minhas filhas é que cuidam da casa.
Mesmo trabalhando tanto, entrei na faculdade de letras, em 1997, mas a crise financeira me obrigou a abandonar. Não que fosse virar professora, estudava para me aprimorar. Também fiz seis anos de kung-fu. Sou faixa marrom, luto com espada, bastão e faca. Parei por falta de tempo. Mas o que mais lamento é não ter acompanhado de perto a educação das meninas. Elas foram mais cuidadas por vizinhos e parentes que por mim. Nossa relação é distante. E eu sofro! Como eu vivia fora, elas não me apresentavam os namorados, eu não soube do dia em que menstruaram pela primeira vez. Só fiz pagar, pagar, pagar... Talvez, lá no fundo, elas se orgulhem de mim. Mas eu me culpo um pouco, queria outra vida para elas. O resultado da minha ausência é que as duas são mães solteiras: a Janaína tem o Dornélio, de oito anos, e a Stephanie, de cinco. A Lígia é mãe do Douglas, também de cinco. A mais velha é operadora de marketing, a caçula estuda turismo e computação, que eu pago. E minha gana de trabalhar, hoje, é pelos meus netinhos, que adoro.
Nos meus momentos com Deus, na igreja, sinto que meu espírito vai ter muita paz quando eu me for. Elevo meu pensamento e rezo, não para pedir, mas me concentro nas coisas bonitas que me acontecem. A religiosidade me dá força. Eu tenho entusiasmo para correr atrás, me defender, criar a família, aguentar o tranco. Hoje sou coordenadora do meu ponto, no Parque D. Pedro, que tem 13 carros. Sou a única mulher e todos os problemas vêm a mim. Almoço com políticos, milito no sindicato. A minha vida todo mundo no sindicato conhece e respeita. Tomara que Deus me conceda a graça de não ter que me aposentar. Espero morrer no táxi, porque quanto mais eu vivo e vejo a vida nas ruas, mais eu sinto o quanto a vida é linda.

1.2.06

Estou de volta às «corridas», depois de três dias de descanso para recuperar energias. Grande agitação em certas zonas da cidade, por causa de um norte-americano que dá pelo nome de Bill Gates. Vou ao Hotel Ritz levar um casal grego e depara-se-me autêntico aparato policial. Nem me deixaram fazer contas com os clientes – obrigaram-me a estacionar mais à frente e fiquei com a impressão de que alguém estava a registar a matrícula do «meu» táxi. Segurança oblige!
Decidi dar a volta e estacionar na praça de táxis, quase em frente à porta principal do hotel. Polícia e mais polícia, nunca tinha sentido os meus gestos tão vigiados. Para mais tenho este ar meio árabe, meio cigano... Até o simples gesto de levar a mão ao bolso e tirar o maço de cigarros parecia despertar a atenção dos agentes, uns fardados e outros à paisana (deduzi).
Nisto chega um taxista que costuma parar no Ritz. Começámos a comentar a situação e ele aponta para os telhados dos prédios vizinhos: «Estão cheios de polícia!» Assustei-me com o gesto do meu companheiro de trabalho... Não vi qualquer polícia nos telhados, mas senti-me ainda mais vigiado... «E se pensam que eu sou um taxista ao serviço de quaisquer interesses obscuros?»
Nisto, respirei fundo, fumei um cigarrinho e decidi desfrutar aquele momento da presença do homem mais rico do Mundo. Uma limusina estava estacionada em frente do hotel. Carros de alta cilindrada entravam e saíam. Gente bem engravatada andava num rodopio... Finalmente, chega um cliente. «Leve-me ao Rossio!»
Ora bolas! O que eu gostaria de ter transportado o sr. Bill! Tinha umas coisinhas para lhe dizer... Fica para a próxima!

PS – Não escondo que sinto simpatia por Bill Gates. Não por ser multimilionário, mas porque o considero um homem inteligente e que em muito contribuiu para o progresso da humanidade. Em conversa com o meu amigo Sérgio, ele veio com argumentos que não favorecem muito o pai da Microsoft (leia-se Maicrosoft, por favor!). Ou seja: que o sr. Bill, afinal, não é santo. Assim seja! Mesmo com todos os seus «pecados», que devem ser muitos, não consigo deixar de admirá-lo.