O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

20.6.06

Portugal-Irão às duas da tarde... Aproveito a hora de almoço para ver o jogo, mas ao intervalo, já com o estômago aconchegado, decido arrancar com o táxi e ouvir o relato na voz inconfundível de Fernando Correia (TSF). Dirijo-me ao aeroporto. Nem cinco minutos de espera... É chegar e... «carregar» (não gosto da expressão, soa-me a mercadoria, mas é utilizada na gíria taxista). Transporto um casal de ingleses ao Hotel Solplay. Desligo o rádio (não gosto de incomodar). Em Linda-a-Velha, ouve-se enorme estrondo. Ligo de imediato o rádio e lá estava Fernando Correia a confirmar: «gooooooooolo de Cristiano Ronaldo!» Desligo o rádio. «No! No!», suplica a inglesa.

19.6.06

Esteve em Portugal em 1998, por altura da EXPO, integrado no «Navio Escola Brasil» (equivalente à nossa «Sagres»). É capitão-tenente aposentado da Marinha brasileira e vive em Maceió/Alagoas. Breve estada em Lisboa, vindo de Paris e com destino ao Recife. Eram onze da manhã e formulou-me um desejo, quase um pedido: almoçar caldo verde e bacalhau e... estar à uma hora no aeroporto.
Petrúcio queria evitar a todo o custo a refeição no avião e, por outro lado, saborear o bacalhau português («o melhor do Mundo») e beber um vinho tinto do Alentejo. «A esta hora de domingo vai ser muito difícil...», disse-lhe, enquanto pensava já na melhor solução para não o desiludir. Fui a um restaurante no Bairro Alto e... nada!; dirigi-me a outro, bem perto, e nem sequer tinha as mesas postas.
«E agora?» Ainda pensei em levar o capitão Petrúcio a minha casa, cozinhar duas postas de bacalhau com batatas, regá-lo com bom azeite de Castelo Branco e abrir uma garrafinha de tinto. Mas depressa mudei de ideias...
Àquela hora, só mesmo o Galeto! Sou conhecido na casa, mas não às onze da manhã... Costumo frequentá-la mais ao fim da noite. Estacionei o táxi e acompanhei-o. Falei com a empregada, bem simpática. «Eureka!» Um dos pratos do dia era bacalhau assado no forno! E caldo verde... há sempre!
O capitão Petrúcio ficou com um brilhozinho nos olhos e convidou-me para almoçar. Mas como?, se tinha tomado o pequeno-almoço há pouco tempo... Fui dar uma voltinha, fiz mais duas «corridas» e ao meio-dia e meio lá estava, à porta do Galeto. Petrúcio já estava sentado na esplanada, feliz da vida. «E o vinho?», quis eu saber. «Bebi Borba. E o pessoal atendeu-me muito bem.»
Rumámos ao aeroporto. Trocámos números de telefone e estou convidado para umas férias em Maceió. Não sei quando, mas isso que importa? O gesto é tudo!

15.6.06

Lisboa acordou de cara lavada, graças à forte chuvada da noite de terça-feira. A temperatura baixou, respira-se melhor, circula-se mais à vontade, mas em contrapartida os feriados deixaram os taxistas quase sem trabalho. Adiante!
Olhos azuis penetrantes, chapéu vermelho excêntrico e... sempre, sempre a sorrir. Inicio a subida da Calçada da Estrela e arrisco:
– Tem um chapéu muito bonito, à Benfica! Está muito bem-disposta...
A Joana sorri, sorri... e limita-se a responder:
– Comprei-o na Feira da Ladra...
– Qual a receita para a sua boa disposição – insisti, à espera de desvendar o que lhe ia na alma.
– A receita é... o chapéu! – diz-me com um sorriso maroto.
À chegada à Rua Silva Carvalho, em Campo de Ourique, alguém gritou a plenos pulmões, de um terceiro andar: «JOOO...AAA...NA!»

13.6.06

A última «Visão» dedica a capa aos mistérios da vagina. Nada contra a vagina, mas fica a ideia de que a revista fundada por Cáceres Monteiro está a ceder espaço a temas mais mediáticos. Será para aguentar o projecto «JL»? Se assim for...

12.6.06

Portugal estreou-se com vitória sobre Angola (1-0), no Mundial, mas não convenceu (excepção para Figo). Não jogou bem, a formação portuguesa, mas ao menos acabaram as «vitórias morais»... Com Deco, espera-se, a música será bem diferente.
A propósito do Mundial. O meu amigo Carmo não gosta de futebol. Custa-lhe aceitar esta «febre» à volta de ídolos que se exprimem com os pés... Por mais que tente convencê-lo da beleza (geométrica) do futebol, não consigo. Tem outros gostos, outras preferências...
O mais giro, nesta estória, é que o Carmo trabalha, como web designer, no site de um jornal desportivo – portanto, está rodeado de futebol por todos os lados...
Ontem, confrontei-o com esta situação «absurda», mas ele não vacilou e a resposta surpreendeu-me:
– Quando foi construída a Torre Eiffel, levantaram-se vozes de protesto. Um dia, um dos mais acérrimos críticos do projecto foi encontrado lá em cima... Questionado sobre a sua presença no local, respondeu: «Este é o único sítio de Paris onde não consigo observar esta obra ridícula.»

9.6.06

Aeroporto-Queluz. O Tiago é um puto-bera-cumó-camando, parafraseando o grande Carlos Pinhão. Mal entrou no táxi, embirrou com a foto da minha carteira profissional. «Porque é que tu cortaste o bigode?» Mas não ficou por aqui... Na Segunda Circular, à passagem pelo Estádio da Luz, voltou à carga: «Porque é que o meu tio mora em Benfica e não é do Benfica?»
Porque é que os putos fazem perguntas difíceis?

O romance da solidão portuguesa

O livro «Longe de Manaus», de Francisco José Viegas, venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2005 – um mais prestigiados prémios literários portugueses, patrocinado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, Câmara de Grândola, Fundação Gulbenkian, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Instituto Camões e Sociedade Portuguesa de Autores.

«Depois de iniciar uma investigação sobre a morte de um homem desconhecido encontrado num apartamento dos arredores do Porto, Jaime Ramos – o detective dos anteriores livros policiais de Francisco José Viegas – é levado a percorrer caminhos que o transportam entre Portugal, o Brasil e a memória de Angola. Nesse triâgulo vivem personagens solitárias que desaparecem sem deixar rasto e cujas biografias tenta reconstruir a partir do nada, socorrendo-se apenas da sua imaginação. Esse percurso transportará o leitor da Beirute do século XIX até ao coração da Amazónia e à Manaus contemporânea, do Porto a São Paulo, de Luanda ao Rio de Janeiro e ao Amapá, da guerra de Angola e da Guiné aos apartamentos vazios onde são recolhidos cadáveres, memórias e silêncios. Há homens sem biografia nem memória, mulheres que desafiam o conformismo e a mediocridade do seu pequeno mundo, seres humanos que perderam todas as ilusões e se limitam a procurar não morrer. Este cruzamento de geografias e de tipos humanos provoca alucinações no próprio narrador, que ora escreve em português de Portugal, ora em português do Brasil, e no investigador Jaime Ramos, que é obrigado a inventar histórias de perdição para que o seu mundo tenha algum sentido. Reconstruindo a própria linguagem do romance policial, subvertendo as suas regras, escrito em tons e linguagens distintos, Longe de Manaus é o romance da solidão portuguesa, o retrato distante e desfocado de um país abandonado às suas memórias e ao seu desaparecimento.»

(Site das Edições ASA)

8.6.06

Pelos campos do mundo senha e signo
ele não desiste e nunca se repete
e em cada rua há um menino
de camisola número sete.

Pelos campos do mundo seu nome é quem nos diz
ele corre e finta e dribla e com seus pés
pelos campos do mundo escreve o seu destino.

Por isso diz-se Figo e é um país
com ele o sonho é português.

Manuel Alegre

Falemos de coisas mais importantes

Gosto de pessoas que têm a coragem de remar contra a maré. É o caso de Miguel Sousa Tavares. Não resisto a transcrever (com a devida vénia...) a sua crónica em «A BOLA de terça-feira (6-6-2006). Li com muita atenção a parte em que fala do jornalismo desportivo. E de Saltillo! Então, como agora, há alguns jornalistas que só têm uma forma de estar na profissão – de cócoras!

Sábado passado, deliciado a assistir a um grande jogo de ténis, dei comigo a pensar que bom é haver vida desportiva para além do futebol — num momento em que parece que não há nenhum outro tipo de vida, desportiva e não desportiva, para além do futebol e do Mundial.

1 - Sábado passado assisti a um dos grandes momentos desportivos deste ano: o jogo dos 16 avos-de-final de Rolland Garros, opondo o campeão em título e n.º 2 do ranking, Rafael Nadal, ao francês, 32.º ATP, Paul-Henri Mathieu. No dia em que completava apenas 20 anos de idade (!), o maiorquino Nadal, uma espécie de apache em fúria no court, teve de sofrer quatro horas e 53 minutos para se livrar do seu corajoso adversário — apenas treze minutos a menos do que durou, no mês passado, a célebre final de Roma, vencida em cinco sets pelo mesmo Nadal contra o n.º 1 mundial, Roger Federer.

E, ao longo das quatro horas e 53 minutos de jogo, pude, uma vez mais, confirmar a minha certeza de que o ténis é o mais bonito desporto alguma vez inventado e compará-lo, sei lá, com o futebol, por exemplo. E dei comigo a interrogar-me porque me deixo envolver tanto com o futebol — que, ao pé do ténis, não passa, hoje em dia, de um grande negócio alimentado ou pela paixão clubista e nacionalista ou pela esperança, quase sempre defraudada, de, de vez em quando, assistir a um grande espectáculo, como nos tempos em que os seus protagonistas se chamavam Maradona, Sócrates, Zico, Cruyff, Beckenbauer, Netzer ou Madjer.

Para começar, o ténis não tem clubes — o que, desde logo, afasta a paixão e a cegueira clubista. E, mesmo quando se torce por um compatriota, a beleza e a intensidade do duelo são tamanhas, que fatalmente acaba-se a torcer pelo mais corajoso, mais combativo ou melhor jogador. Depois, há uma rede a dividir os jogadores, o que impede desde logo o antijogo e as tácticas defensivas — muito embora, e essa é uma das atracções do jogo, se assista muitas vezes a duelos entre jogadores mais defensivos, como Nadal, e outros mais de ataque, como Mathieu.

O facto de não ser um jogo colectivo retira ao ténis o lado de desenho estratégico em movimento, que é um dos aliciantes do futebol, mas isso é largamente compensado pelo seu lado de duelo medieval entre dois contendores. E, por maior que seja a diferença entre ambos, é raríssimo que, ao longo de todo um jogo, um dos contendores esteja permanentemente por cima: cada um deles atravessa diferentes momentos de inspiração ou de desinspiração, de coragem ou de recuo, de fé ou de descrença. E é impressionante a capacidade de resistência física e psicológica de jogadores que são capazes de estar a trocar bolas, em permanente movimento e esforço, durante uma partida que chega a durar mais que três jogos de futebol. Depois, há toda a beleza técnica e estética do jogo em si mesmo, que não vale a pena sequer tentar explicar: ou se entende ou não se entende.

Finalmente, e não menos importante, o ténis permanece, ao longo de mais de um século de existência, um verdadeiro desporto de cavalheiros. Ninguém se atreve a contestar o árbitro — quando muito, pede-se-lhe delicadamente que ele confirme que a bola foi fora ou não. Nenhum jogador discute com o outro durante o jogo e são raríssimos, ou nenhuns mesmo, os casos em que um jogador ousa atribuir a derrota a falta de sorte ou culpa do árbitro. A regra é só uma: quem ganhou, mereceu ganhar.

Portanto, sábado passado, deliciado a assistir a um grande jogo de ténis, dei comigo a pensar que bom que é haver vida desportiva para além do futebol —num momento em que parece que não há nenhum outro tipo de vida, desportiva e não desportiva, para além do futebol e do Mundial.

2 - Aqui há umas semanas houve um debate, salvo erro na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, sobre o jornalismo desportivo. Li nos jornais que um dos participantes, jornalista, contou que no voo que levou recentemente a equipa do Benfica a Moçambique, Luís Filipe Vieira terá passado um violento raspanete a toda a imprensa desportiva que acompanha normalmente a equipa, já não sei a propósito de que assunto. E que, estranhamente, tal episódio não foi relatado nem referido por nenhum dos destinatários que seguiam a bordo. Não sei se a história é verdadeira ou não; sei que veio publicada na imprensa não desportiva e que ninguém que eu tivesse visto a desmentiu, assim confirmando implicitamente a sua veracidade e as lições que ela implica.

Lembrei-me disso a propósito da conferência de imprensa em que o seleccionador nacional anunciou a sua escolha dos 23 para a Alemanha. Obviamente, o interesse principal era ouvir da boca dele uma explicação para a não convocação de Quaresma e outros. Mas bastou que Scolari tivesse anunciado previamente que não respondia a perguntas sobre os não convocados para que todos os jornalistas presentes acatassem obedientemente a sua ordem. Do mesmo modo, só depois de alguns comentadores terem levantado a questão de saber se o calor de Évora era o melhor ambiente para preparar a Selecção e se os jogos contra Cabo Verde e o Luxemburgo seriam os testes mais adequados, é que alguns jornalistas ousaram aflorar o assunto para logo serem ameaçados pelo dr. Madail, que jura que vai voltar da Alemanha de dedo em riste para apontar os «antipatriotas» que ousam questionar a infalibilidade divina de quem decide estas coisas transcendentes.

Quero apenas recordar que o silêncio e a submissão da imprensa são maus conselheiros. Lembrem-se de Saltillo, onde o silêncio conivente perante a ribaldaria em que vivia a Selecção, no total desconhecimento de todo o país, foram contributo decisivo para um dos mais vergonhosos episódios do desporto português de todos os tempos. Quem lá está é que sabe com que linhas se deve coser. Mas, seguramente, não podem crer que andamos todos bem informados com a simples menção de mais um treino ligeiro da Selecção ou aquelas conferências de imprensa onde, com algumas raras excepções como Costinha, os jogadores debitam as maiores banalidades possíveis como se dissessem coisas de uma imensa importância e profundidade. Não basta relatar que a Selecção foi recebida em Marienfeld por dez mil emigrantes portugueses, numa impressionante demonstração de amor ao país distante e crença na equipa nacional que o representa e cuja simples presença tanto significa para esses portugueses longe de Portugal. É preciso contar também que a Selecção passou por eles como se não os visse, não perdendo sequer três minutos a agradecer-lhes o esforço, o estímulo e o sacrifício.

3 - A seu tempo, e se estiver para me chatear com o assunto, darei a devida resposta à parte que me tocou da entrevista do sr. Scolari à imprensa brasileira. Por ora, limito-me a dizer que ela apenas confirma o que já se sabia, mas que também é tabu: que o seleccionador nacional é um sujeito mal-educado, arrogante, ignorante e saudoso de regimes sem liberdade de imprensa nem regras de conduta democrática. Até pode, por absurdo dos deuses, voltar da Alemanha com o título mundial na bagagem: nem isso, a meu ver, o tornaria qualificado para representar e chefiar a Selecção do meu país. E pouco me importa se, como ele diz, houver 99,9 de portugueses que não pensam assim. Sorte a dele!

Miguel Sousa Tavares

6.6.06

Os divórcios não param de aumentar. Quem o afirma é o responsável de uma Conservatória de Lisboa que transportei na sexta-feira, à hora de almoço, exausto, porque só naquela manhã tinha «despachado» sete casais que decidiram mudar de ares. «Só tratamos de divórcios amigáveis; os litigiosos é com os tribunais.»
Não me espanta, sr. conservador! Apesar de estar vacinado contra a maleita, ainda recentemente fiquei surpreendido com a separação de dois casais amigos, um quarentão e outro cinquentão, que se «davam» às mil-maravilhas... Coisas da vida!

5.6.06

A leitura e a virtude cívica

Este «cantinho» não serve apenas para contar estórias de «fogareiro». Sempre que um texto merece reflexão, nada melhor que transcrevê-lo (com a devida vénia) e, assim, partilhar a sua leitura com os amigos cibernautas. É o caso deste artigo de Francisco José Viegas, publicado no «Jornal de Notícias».

Uma das notícias da semana passada foi, sem dúvida, a apresentação das ideias gerais que hão-de presidir ao Plano Nacional de Leitura. O país interessou-se vagamente pelo assunto, porque chegou à conclusão de que se atingiu - nas escolas e na vida familiar - uma espécie de ponto de não-retorno, cujo diagnóstico é certamente pessimista. As opiniões de Vasco Pulido Valente e de José Saramago, manifestadas de forma corajosa (bem como, por exemplo, Abel Barros Baptista) vieram trazer alguma polémica, sempre bem-vinda a um universo onde são todos bonzinhos e se acha que a leitura tem a ver com a cidadania, numa espécie de aliança de virtudes cívicas.

Essa ideia é, além de irritante («bons cidadãos, bons leitores»), perversa e ruim para a própria leitura. A leitura é fonte de inquietação, de ruína, de descalabro - e também de felicidade e de preguiça. Nenhuma destas coisas faz bons cidadãos. Certamente que «ler muito» é bom - mas «ler bem» é muito melhor. É claro que ninguém, no seu perfeito juízo, está em condições de definir o que é «ler bem», embora se perceba que se trata de ler bons autores, de conhecer a grandeza dos clássicos da nossa língua e das outras línguas, da nossa cultura e das outras culturas. Ninguém é melhor cidadão por ter lido Fernando Pessoa ou João de Barros. Mas a capacidade de entender o mundo melhora consideravelmente.

Ler bem é, também, aproveitar a felicidade de ler, se se é feliz ao ler um livro que se amou. Mas não se trata de uma virtude cívica.

Por isso, mais que um plano nacional de leitura apresentado como uma prioridade nacional e cívica, com a sua inevitável pompa cheia de valores politicamente correctos, é necessário que a escola mude alguma coisa nos seus hábitos. A escola e as famílias. Mas a escola cumpre um papel essencial, razão porque há a esperar alguma coisa desta iniciativa, uma vez que na sua base está também o trabalho de uma das pessoas que mais fizeram pela qualidade das bibliotecas escolares, Teresa Calçada, além de uma autora que pôs muitos adolescentes no caminho da leitura, Isabel Alçada.

Precisamente, alguns ideólogos estapafúrdios do ensino do Português (aqueles que dizem que a matéria curricular trata do «ensino do português» e não do «ensino da literatura») garantem que interessa acabar com a iliteracia e que a literatura nada tem a ver com o assunto. Provavelmente, nesse sentido, não haverá «vantagem cívica» em ter estudantes que saiam da escola a saber quem é Cesário Verde, a conhecer alguns trechos da «Peregrinação» ou de Fernão Lopes, a ter decorado dois ou três versos de Sá de Miranda ou de Tomás António Gonzaga. Por isso, os manuais do ensino e os livrinhos dos professores estão cheios de banalidades, de algaraviadas e de português deficiente.

Distingo, aí, algumas vozes a chamarem-me reaccionário. É um argumento e tanto, mas advirto que não vale nada. Penso que o conhecimento dos clássicos é um dos melhores caminhos para conhecer a nossa história, a nossa língua e a nossa cultura. E que a leitura de um clássico é melhor que a leitura de um regulamento do «Big Brother», um artigo de jornal ou cartaz publicitário. Mas estes anos de insistência nas «virtudes cívicas do ensino do português» em vez do ensino da literatura, «produz técnicos de ensino» do português mas não forma professores disponíveis para cativar estudantes do secundário para os desafios da leitura. Um dos argumentos é triste e vergonhoso: o de que os estudantes do secundário, por exemplo, «não compreendem» o texto de um clássico, «não entendem» a linguagem dos autores do cânone da nossa literatura. Por isso, tratam de «facilitar o caminho» e de modelar a cabeça das criancinhas (infantilizadas e maltratadas por anos de erros ortográficos). Se o Plano Nacional de Leitura não devolver os clássicos da nossa língua à escola, não terá sucesso.

Francisco José Viegas («Jornal de Notícias»)

Nunca vi qualquer episódio da série juvenil «Morangos com Açúcar», da TVI. Vejo pouca televisão e selecciono os programas que me interessam, dentro da disponibilidade de tempo, quase sempre a horas tardias. Li muito pouco sobre a morte recente do jovem actor Francisco Adam («Dino»), que tanta tinta fez correr. Chocou-me o aproveitamento que aquela estação televisiva fez da tragédia e veio-me à memória um artigo que li em tempos, salvo erro no «Expresso», a propósito das audiências televisivas. Sem escrúpulos, algumas televisões já não recorrem apenas ao sexo para aumentar o «share» – a exploração da morte, pelos vistos, também é uma boa fonte de receita...
Voltando aos «Morangos com Açúcar». Há dias, durante uma «corrida», pessoa que disse conhecer os bastidores da série falou-me de coisas de bradar aos céus. Como o regime de «escravatura» a que os jovens actores estão sujeitos para corresponder às exigências da produção. E outras coisas mais que não me atrevo a reproduzir. «Se muitos pais soubessem, não permitiriam que os filhos participassem na série, independentemente dos benefícios materiais que estão subjacentes.»
Sem comentários!

Jogo pelos professores

Não resisto a transcrever, com a devida vénia, o artigo de Vítor Serpa em A BOLA de sábado (3-6-2006). Nem sempre concordo com as opiniões do director do «meu» diário desportivo, mas hoje estou aqui para o elogiar, a propósito da recente polémica sobre a avaliação dos professores.

«Os pais sempre foram o pavor dos professores de natação, dos técnicos do futebol jovem, dos animadores das corridas de rua. Os pais, em casa, acham os filhos umas pestes; mas na escola, no campo desportivo, no patamar da casa do vizinho, acham os filhos virtuosos e sábios.»

Os professores andam em pé de guerra. Como os professores são normalmente distantes uns dos outros, os seus pés de guerra andam por aí semeados como pés de salsa, espalhados pelo País. De norte a sul.
Os professores estão descontentes. Com a vida que lhes corre mal, porque ninguém os valoriza; com os colegas, que só se interessam por resolver a sua vidinha; com os alunos, que os desconsideram e maltratam; e, acima de tudo, com o Governo da nação, que os desvaloriza, os desautoriza e os desmoraliza.
Nunca fui um estudante fácil e sabia que um professor desautorizado era um homem (ou uma mulher) morto na escola. Não quero dizer fisicamente, mas profissionalmente. Como sempre fui bom observador, conhecia de ginjeira os professores fortes e os professores fracos. Os fortes resolviam, por si próprios, a questão. Alguns pela autoridade natural do seu saber e da sua atitude, outros de forma menos académica. Os fracos eram defendidos pelos reitores. Ir à sala de um reitor era, já por si, um terrível castigo. Mas bem me lembro de que professores fracos e fortes, bons e nem por isso, se protegiam, se defendiam e se reforçavam na sua autoridade comum.
Já nesse tempo se percebia que tinha de ser assim, porque, se não fosse, os pais comiam-nos vivos e davam-nos, já mastigados, aos filhos relapsos. E isso a escola não consentia.
Os pais, dito assim de forma perigosamente genérica, sempre foram entidades pouco fiáveis em matéria de juízo sobre os seus filhos e, por isso, sobre quem deles cuida, ensina e faz crescer. Os pais sempre foram o pavor dos professores de natação, dos técnicos do futebol jovem, dos animadores das corridas de rua.
Os pais, em casa, acham os filhos umas pestes; mas na escola, no campo desportivo, no patamar da casa do vizinho, acham os filhos virtuosos e sábios.
Os pais são, individualmente, insuportáveis e, colectivamente, uma maldição.
Claro que há pais... e pais. E vocês sabem que não me refiro aos pais a sério, que são capazes de manter a distância e o bom senso. Falo dos outros, dos pais e das mães que acham sempre que os seus filhos deviam ser os capitães da equipa e deviam jogar sempre no lugar dos outros filhos. O trágico disto tudo é que são precisamente esses pais os que, na escola, se acham verdadeiramente capazes de fazer a avaliação, o julgamento sumário dos professores dos seus filhos, achando que eles só servem para fazer atrasar os seus Einsteinzinhos.
Por isso eu aqui me declaro a favor dos professores. Quero jogar na equipa deles contra a equipa dos pais e ganhar o desafio da vida real e do futuro deste país contra o desafio virtual dos pedagogos de alcatifa.

Vítor Serpa (A BOLA de 3-6-2006)

2.6.06

«O homem primitivo tinha um apurado instinto para a caça. Era dessa forma que se alimentava, pondo em prática a forma mais eficiente de matar a presa. Existia também o instinto para proteger o território e qualquer competidor era eliminado. Na história da humanidade, o século passado foi o mais sangrento de sempre, quando era suposto ser o mais civilizado. As conquistas científicas continuam a ser usadas para fins devastadores. Cada vez se descobrem formas mais sofisticadas para aniquilar os nossos competidores. Pense-se em como, recentemente, quão rápido o fervor nacionalista inflamou a Bósnia e a Herzegovina, quão rapidamente se desfizeram os laços que uniam uma velha comunidade, quando professores, carpinteiros, negociantes, pessoas normais se lançaram numa tarefa devastadora. O nosso instinto está virado para a violência e para a crueldade. Mas o instinto predador também nos leva à descoberta. O último século também foi palco de grandes avanços. (...)»

Robert Wilson, autor de «Último Acto em Lisboa» e «O Cego em Sevilha», entre outros títulos.

É sempre com prazer que leio António Pereira. E quando se trata de um «Hoje Jogo EU» (uma das rubricas mais antigas de «A BOLA», uma janela para o Mundo, muito antes do 25 de Abril...), o prazer é redobrado.

Na Holanda mandam as mulheres e os ciclistas. Estes últimos estão em todo o lado, surgem do nada e atravessam-se à frente dos carros com a mesma naturalidade com que falam ao telemóvel ou montam a bicicleta de canadianas aos ombros, serpenteando alegremente pela infindável rede viária de que dispõe toda a cidade.
Eu, eterno pendura, divirto-me com esta saudável irresponsabilidade, enquanto o Pona, mais rotinado na agressividade verbal das estradas portuguesas, não se cansa de praguejar contra estas melgas, mas tão consciente como eu de que atropelar um deles é mais grave que abalroar uma vaca sagrada nas ruas de Bombaim.
A mesma consequência enfrenta o marido que se atreva a violar o espírito da «ladies night», ou não fossem as rainhas o maior factor de união do povo holandês. Juliana ou Beatriz, uma delas deu um forte contributo à causa feminina ao institucionalizar as quintas-feiras como o dia da mulher, o mesmo é dizer que o marido fica em casa a tomar conta dos filhos, enquanto a mulher sai para o forrobodó ou o que bem lhe apetecer. E escusam eles de montar vigilância, porque em toda a cidade os bares e as discotecas só permitem entrada aos homens já a meio da noite.
Para mim será, porventura, o maior desafio ao meu conceito de igualdade de direitos e abstenho-me de dizer publicamente o que penso do assunto. Mas dei comigo a rir sozinho nas ruas de Amesterdão, só de imaginar a reacção de alguns maridos que conheço em Lisboa se fossem induzidos a fazer esta pequenina cedência...

António Pereira

Lisboa que amanhece

Desculpem qualquer coisinha, mas hoje nada aconteceu que justifique um «post». Nada? Pela primeira vez, fiz um funeral. Da igreja da Luz ao cemitério do Alto de São João, aquela hora (de ponta) pareceu-me uma eternidade. Fico sem palavras, não sei o que dizer às pessoas nos momentos difíceis. Terminada a «corrida», ouvi Sérgio Godinho. Sabe bem conduzir ao som da sua música, cantarolar os seus poemas. E fumar um cigarrinho!

Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo

A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram

Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece

O Tejo que reflecte o dia à solta
a noite é prisioneira dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem

E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes

Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras

E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura

Na Lisboa que amanhece

1.6.06

Nasceu no Porto, formou-se em medicina e rumou à Holanda, onde vive há oito anos. Dedicou-se à investigação científica e não tenciona regressar, a não ser nas férias. Veio acompanhada de dois amigos holandeses que visitam Portugal pela primeira vez. A viagem Hotel Corinthians-Oeiras, via Marginal, foi muito agradável. Simpática, a jovem investigadora portuguesa falou sem rodeios das razões que a levaram a optar pelo estrangeiro. «Em Portugal gasta-se pouco em investigação científica.»
Deixei-os num bom restaurante de Oeiras, com vista para o Tejo. Regressei a pensar nas palavras daquela mulher ainda jovem (30 anos) e nas razões que a levaram a trocar Portugal pela Holanda. Não temos investigação científica, mas temos uma dezena de estádios novinhos em folha, metade dos quais «às moscas»...