O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

22.9.06

Manhã caótica em Lisboa, no primeiro dia de Outono. Greve no Metropolitano, chuva intensa e vento forte (os efeitos colaterais do furacão «Gordon»...). Muito trabalho para os taxistas. Se ao menos pudéssemos circular... Uma hora do aeroporto às Amoreiras e os executivos espanhóis em desespero, por não chegarem a tempo à reunião programada. Foi a primeira vez que vi Santa Apolónia sem táxis... Uma fila enorme e um beirão em primeiro lugar. Há seis anos perdeu uma perna num acidente de moto e veio a Lisboa substituir a prótese. Custou-me imenso a «corrida» até à Av. Marquês de Tomar. Não tanto pela conversa, que girou à volta de motos e suas desgraças – mais pelo cheiro nauseabundo que o homem exalava. Terminada a «corrida», limpei o banco (sentou-se a meu lado) com detergente e exagerei no spray bem-cheiroso, mas o odor era tal que ainda agora está entranhado no meu... cérebro.
Ossos do ofício!

17.9.06

Não dispenso o «Livro Aberto», programa de Francisco José Viegas, na RTPN. Hoje, o convidado foi José Eduardo Agualusa. Uma conversa muito interessante que me prendeu ao televisor do princípio ao fim, tanto mais que li alguns dos seus livros.
No final do programa li (na Internet) uma entrevista de Agualusa ao jornal «Época», na qual fala de António Lobo Antunes e José Saramago, da melancolia portuguesa e de muito mais... Não resisto a transcrever, com a devida vénia, duas passagens dessa entrevista:

ÉPOCA - E os autores portugueses?
Agualusa - São todos terrivelmente melancólicos. Não há personagem de autor português que não se suicide no final. Os portugueses parecem alguns autores paulistas actuais, soturnos e pessimistas. E há aqueles que não escondem a nostalgia do império e inventam um herói, sempre português, que percorre a África e a América, em geral povoadas por coadjuvantes sem importância. Ultimamente, porém, tenho lido autores jovens - Francisco José Viegas e Pedro Rosa Mendes - que já conseguem olhar para as antigas colónias com olhos menos colonialistas. O maior escritor lusitano da actualidade chama-se António Lobo Antunes. Ele é difícil na sua linguagem cheia de metáforas, é mesmo exagerado e sombrio, mas no meio de extensas zonas de sombra encontram-se golpes luminosos. Só que há poucos portugueses com humor depois de Eça de Queirós.

ÉPOCA - Por falar nisso, não citou o Nobel José Saramago. O que acha dele?
Agualusa - Ele pode ser um grande escritor. «Memorial do Convento» é um excelente romance. Mas não gosto dele. Saramago cultiva o niilismo. É um pessimista que não acredita na vida e os seus livros são contaminados pelo desencanto. É difícil escrever quando se descrê completamente da vida. Um grande romance deve ser feito com raciocínio, mas também com paixão, as vísceras e o coração. No seu último livro, «Ensaio sobre a Lucidez», Saramago faz a defesa do voto em branco, o que é ridículo, pois ele candidatou-se como deputado pelo Partido Comunista. José Saramago é vítima da própria descrença. É um velho.

4.9.06

Lisboa está cercada de bairros problemáticos que fazem lembrar, embora em menor escala, as favelas do Brasil. Foi preciso ingressar nesta vida para me aperceber desta triste realidade à volta da capital portuguesa. E não apenas no concelho da Amadora...
Um dia destes, à noite, transportei três indivíduos da Gare Oriente para o bairro do Catujal (Sacavém). Conheço mal a zona e segui as instruções dos clientes, ainda jovens. Viro à esquerda e à direita não sei quantas vezes, estou agora num caminho de terra batida em zona de casas modestas. Começo a desconfiar da conversa... «Não tem medo? Alguns taxistas têm medo de vir aqui...»
«Medo? Porquê? Estou bem acompanhado...», respondi sem vacilar, mas consciente de que a situação poderia complicar-se a qualquer momento. Percorro mais uns metros e depara-se-me um jipe da GNR. Nem hesitei: «Meus amigos, desculpem mas o serviço termina aqui...»
Não reagiram... Cada um puxou dos trocos e pagaram-me a «corrida». Dirijo-me aos agentes e faço um sinal de agradecimento. Nunca, na minha vida, senti tão amiga a presença das autoridades...

3.9.06

Até ao nascer do Sol, é chegar à discoteca Lux e «carregar» (passe a expressão). Trata-se de um espaço diferente na noite de Lisboa, frequentado por gente gira e bem-disposta. Já contei várias estórias do Marcelo (nome fictício), o taxista mais «assediado» da noite alfacinha. Ele não dispensa várias idas ao Lux e, numa delas, transportou um casal de lésbicas. Vinham ligeiramente eufóricas (bebe-se sempre um copo a mais...) e decidiram materializar o seu amor ali mesmo, dentro do táxi. Como o espelho retrovisor dos taxistas é muito coscuvilheiro, o Marcelo (fica nas nuvens quando vê duas mulheres acariciarem-se...), às tantas, meio descontrolado, parou o táxi no Parque das Nações, virou-se para as mulheres apaixonadas e disparou: «Vou sair já do carro... Estejam à vontade!»