O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.10.06

Abundância e Macarrão

Em tempos, após uma jornada da Taça de Portugal, diverti-me a descobrir nomes esquisitos de jogadores que actuavam, na altura, em Portugal. Carlos Pinhão, com o seu sentido de humor, achou piada e publicou, em A BOLA, os nomes giros do futebol português. Mais tarde, Fernando Tordo (esse mesmo, o das cantigas) «pegou» no tema e acrescentou à lista mais uns tantos nomes. Depois, foi a vez de Duda Guennes (o brasileiro mais português que conheço...) também publicar nomes giros de brasileiros (e que nomes!).

Partindo do princípio de que nem Eusébio é um nome vulgar, torna-se mais fácil perceber como é possível um tordo escrever a um pinhão. A minha mãe não pára de me chamar Nandito e até amigos meus, que são das músicas, me chamam «O Gordo». Não dá para ficar chateado. Eles também não se aborrecem quando os chamo de «Charmosos» ou «Marrecos», porque é sempre muito mais importante quem são e o que fazem. Muito bem, diga-se de passagem.
Vem isto a propósito da Taça de Portugal e da exaustiva relação de equipas e nomes de jogadores que o vosso jornal nos fornece nestas e noutras alturas, facto que ilustra o respeito que nos merecem todos os intervenientes desta popularíssima prova. Verificamos, então, que pelo meio de tanta equipa existem nomes de jogadores que nos trazem ao rosto e ao espírito um sorriso, não o sorriso de escárnio mas o sorriso feliz de quem consegue encontrar, até nos nomes de alguns jogadores, a alegria do grande jogo -- o futebol.
Neste caso, em vez de os procurar isoladamente e fazer uma selecção, vou mais além e escolho (mandando para toda ela um abraço) a equipa do Serpa: Bicho; Fernando, Canhita, Pepe e Chorão; Gil, Pardal, Laguza e Rolim; Abundância e Macarrão.
Parabéns, igualmente, para o grande Lusitano de Évora, que não está nada mal aviado, não senhor... Não foi o excelente Frasco quem disse que, se não fosse o nome, se calhar ninguém reparava nele?
Para terminar, aqui vai uma lembrança do meu amigo Diamantino, que conheceu e viu jogar, lá para as bandas do Tojal, esta «colecção» que é apenas fabulosa: Gentil; Tempero, Vozona, Val do Rio e Paulinho; Entendido, Aparelho, Penteado e Chino; Pachalica e Vampiro.
Fernando Tordo

Nomes giros do futebol português

Maluka, Kongolo, Mito, Major, Kipulo, Mapuata, Kiki, Escurinho, Bombas, Bala, Caneco, Fan, Mozart, Babá, Tonrró, Picoto, Cachina, Zaica, Lila, Gaivoto, Pirata, Tuna, Sambaro, Palmeirão, Mocho, N´habola, N´Dinga, Amante, Americano, Biginho, Beazia, Basófia, Becas, Buraquinho, Chapita, Chorão, Canastra, Cabaceira, Cobra, Cabritos, Camões, Copita, Catalão, Caraça, Cacau, Carocha, Chedas, Carapau, Capacete, Carrana, Cuca, Coca, Calçador, Charrua, Cepeda, Chalana, Carioca, Chicão, Caló, Cossanta, Comboio, Chanica, Chapa, Camané, Canã, Esmada, Eira, Elisário, Falica, Gato, Gabirro, Gaivota, Galvanito, Ginho, Garran, Guerrinha, Gaipo, Israel, Inglês, Joca, Jojó, Jacol, Janota, Kafa, Ladela, Lúzio, Lazeiro, Machão, Migidio, Martelo, Mussá, Maneco, Margalho, Machina, Mergulhão, Milhães, Mansilha, Maninja, Minho, Moleiro, Mirradinho, Nacib, Nino, Oeiras, Ourives, Popina, Pixote, Picanço, Piranga, Preguiça, Paciência, Piloto, Picado, Paganini, Pirra, Peruano, Passarinho, Pejo, Pelé, Quinotes, Rim, Rui Belo, Ruefe, Rilhas, Rodeia, Serambeque, Sanina, Stugo, Santo António, Safarra, Sinaleiro, Sereno, Segura, Tadeu, Tatera, Tróia, Tutas, Tita, Tute, Viçoso, Vitinha, Vilacova, Xuxa, Zoinho, Zorrinho...

E nem os árbitros escaparam: Banha, Portulês, Júlio Dinis, Andrelino, Sargaço, Caipo, Cortiço, Estriga, Sabença, Costeira, Ourives, Amendoeira, Caracol, Vacas, Caroço, Crujo...

Camané. Um dos nomes mais representativos da nova geração de cantores que reconciliou o grande público com o fado. Tem enorme respeito pela tradição: Amália, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo, entre muitos outros, são fadistas que cita com frequência, sem abdicar de percorrer o seu caminho. Não enjeita o passado, mas acrescenta-lhe «mais alguma coisa», porque outros são os tempos. «O fado conta a vida. A vida de há 30 anos era diferente, mas os sentimentos são os mesmos: a tristeza e a alegria existem, as razões é que são outras.»
No fundo, Camané construiu «uma canção dentro da mesma canção», deu voz a novos (e antigos) poetas (Aldina Duarte, José Mário Branco, Manuela de Freitas, Amélia Muge...), mas sempre no respeito pela tradição. A guitarra, a viola, o contrabaixo e, naturalmente, a sua voz inconfundível fazem dele «o maior herdeiro dos grandes nomes do fado».

Júlio/Saul Dias. Irmão de José Régio. Viveu no Porto, colaborou em vários jornais, cultivou o desenho, a pintura e a poesia. Há uma relação muito próxima entre a sua produção poética e a sua actividade como artista plástico. Tomei contacto com a sua obra através da Maria João Fernandes, que publicou um livro («Um destino solar») sobre o autor, na Imprensa Nacional. Vale a pena conhecer a obra deste artista multifacetado.
«Quando se ama o abismo é preciso ter asas», assim explicou Júlio/Saul Dias, através de Nietzsche, as várias e complementares vertentes da sua obra. «Sonho com um futuro em que a felicidade seja possível. Mas já me disseram que pinto um amor que não existe», acrescentou.


Escrevi um livro.
Quantos anos a sonhá-lo,
A rascunhá-lo nas mesas dos cafés,
A escrevê-lo nos intervalos do emprego,
A vivê-lo,
A sofrê-lo,
Na província, nas cidades...!

Criei um filho.
Tanta alegria no meu coração!

Só ainda não plantei uma árvore.
O frágil caule como protegê-lo?
Como não deixar que os bichos
Maculem as pequeninas folhas?
E como dialogar com uma árvore-menina?
Agora vai sendo tempo.
Os anos já me pesam.
Amanhã vou plantar uma árvore.


Saul Dias («Essência»)

Tu sabes,
Conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Excerto do Poema «Caminhando com Maiakovski», de Eduardo Alves Costa, publicado no livro «Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século», organizado por José Nêumanne Pinto.

JOSÉ BAÇÃO LEAL. As suas poesias foram recolhidas pela mãe, carinhosamente, dos rascunhos que deitava fora. «Sensibilidade nova, exigente e generosa, marcada por uma ânsia radical de verdade», assim falou Urbano Tavares Rodrigues do poeta que morreu em Nampula (Moçambique), durante a guerra colonial.
O seu testamento («Poesias e Cartas»), descoberto num alfarrabista, é uma das minhas «âncoras». Frequentámos os mesmos cafés (Copa, Mexicana, Império...), partilhámos a mesma angústia (guerra colonial) e a mesma esperança (liberdade).

ORAÇÃO DE VENCIDO

Já se esqueceram as nuvens
A alegria voltou ao rosto das luzes

Os homens do campo
que poderiam ser meus irmãos
são agora estranhas sombras
formulando gestos

Eu vou descendo os degraus da noite
com o passo marcadamente incerto
dos que não sabem perder

e perderam

Caminho em busca da renúncia
com flechas de vento
nas asas da derrota

Levo na cinza dos meus olhos
toda aquela angústia branca
que viceja na espuma dos meus dedos

Por entre pedras e poemas
bêbado e só
eu vou cantando

a minha oração de vencido

José Bação Leal

A última aguardente do Tio Nascimento

É sempre com prazer que leio José do Carmo Francisco, velho amigo e poeta que também dedica parte do tempo às lides da bola. Somos de clubes diferentes (ele do Sporting, eu do Benfica), mas isso que importa quando a amizade «é um posto». A crónica que se segue foi-me oferecida pelo autor. Tem, para mim, a particularidade de falar de uma região que conheço bem, ilustrada com uma foto da bela praia fluvial da Fróia, onde costumo poisar quando piso solo beirão.

Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras.
Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi em novo ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalhar ainda mais para entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto, morreu na grande cidade, um dia antes de fazer a intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida, caso corresse bem. Mas não correu.
Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento, entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e mais perto a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa, mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.
José do Carmo Francisco

19.10.06

Aperaltaram-se com o fato domingueiro para vir à consulta em Lisboa, no Hospital Ordem Terceira, as duas mulheres de sessenta e tal anos, residentes na região de Pombal. Vieram prevenidas — trouxeram a comidinha num cesto de verga. Estão de regresso à terra e... são muito divertidas.
À passagem pelo Marquês de Pombal, uma delas desabafa: «Nunca mais acabam as obras do tonel!»
«Do tonel?!», reage a outra. «Túnel! Tonel é para armazenar o vinho! Ai que vergonha! Ó mulher, dás cada pontapé na gramática!»
E soltaram uma boa gargalhada.

***
Veio do Porto, no avião da manhã, para uma reunião da SONAE. É funcionário da empresa de Belmiro Azevedo. Viagem demorada até Carnaxide, devido ao trânsito. Tempo para algumas conversas: a OPA sobre a PT, o jornal «Público» (da SONAE), a crise de emprego no Norte do País...
Como é natural, o homem é um defensor acérrimo das políticas de Belmiro. «Paga bem, o seu patrão?», provoquei. «Depende! Mas a SONAE, por norma, paga salários baixos, porque aposta na rotação do pessoal...»
Fiquei esclarecido!

12.10.06

Festa de aniversário do Lux. Gente fina é outra coisa! «Podia entrar qualquer pessoa?», provoquei a cliente, vestido futurista cheio de brilhantes, mas amachucado, depois de uma noite d’arrasar.
[Pobre taxista que se farta de «carregar» na discoteca de Santa Apolónia e não teve direito a um convitezinho, nem que fosse para beber uma cervejola...]
«Não! Só por convite...», respondeu-me a cliente, olhos semifechados (seria do álcool ou do sol da manhã?) e desejosa de chegar à Lapa (sim, porque vir da festa do Lux, «só por convite», e morar na Pechileira... não faria sentido).
Crise? Qual crise! Só para o zé-povinho que se farta de azucrinar os ouvidos do taxista com a maldita crise e mais as engenharias do «primeiro» Sócrates. Do que este país precisa é de mais festas (e de um Benfica bem forte).
No próximo ano, se ainda aqui estiver nesta vidinha de «fogareiro» (duvido muito...), garanto que hei-de arranjar um convite para a festa do Lux. Mesmo que para isso tenha de corromper a relações-públicas ou o porteiro da discoteca mais famosa de Lisboa. Sim, porque essa coisa do combate à corrupção, mesmo com o novo procurador Monteiro, ainda vai durar uns anitos...

4.10.06

«Eles ganham mas à vezes perdem. Eles vivem mas às vezes morrem. Sempre que sofrem um golo impossível, sempre que no último minuto se deixam bater e um resultado muda, é uma pequena morte. Um esquecimento negro esconde no olhar dos adeptos todas as defesas, todas as intervenções positivas dos restantes minutos.»

«Os Guarda-Redes Morrem ao Domingo» é um belo livro de José do Carmo Francisco, escritor que tem no futebol uma das suas fontes de inspiração. Lembrei-me de reler algumas páginas, a propósito do golo sofrido por Quim (Benfica), por entre as pernas, no jogo de domingo com o Desp. Aves, no Estádio da Luz.

2.10.06

Gosto da Graça. Vi os primeiros filmes no cinema Royal, subi imensas vezes a Calçada do Monte, desde o Martim Moniz, só para poupar os sete tostões do Eléctrico e... juntar dinheirinho para o bilhete de cinema no fim-de-semana...
Julgava que já bem conhecia Lisboa, mas ainda sou surpreendido. Hoje, uma senhora idosa (D. Maria Ana) foi visitar a irmã à Casa Nossa Senhora da Vitória, na Rua Josefa Maria. Não conhecia o lar nem a rua, apesar de ficarem paredes-meias com a Rua da Graça e a Rua Senhora do Monte, no Bairro Estrela de Ouro.
A D. Maria Ana, muito simpática, indicou-me o caminho e contou-me a história da Casa Nossa Senhora da Vitória, mandada construir por um tal (abastado) Agapito para alojar os seus trabalhadores. Hoje é um lar de idosos com muito bom aspecto (pelo menos por fora...) e amplos espaços, onde apetece repousar.