O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

31.3.07

A primeira vez que ouvi falar no seu nome foi a propósito do livro «Novas Cartas Portuguesas», antes do 25 de Abril (1971), cuja publicação levou as autoras a tribunal. As autoras foram Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta, as três Marias, como ficaram conhecidas.
A seguir ao 25 de Abril cruzei-me várias vezes com Maria Teresa Horta, pela «mão» de Carlos Pinhão, em reuniões de militância política. Femininista, lembro-me da coragem e do fervor com que defendia as suas causas.
Hoje calhou-me transportar a poetisa e jornalista, da RTP até à sua residência. Recordámos outros tempos, quando todos os sonhos eram legítimos, e também um grande Homem – Carlos Pinhão.

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito


É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas


A trégua
a entrega
o disfarce
E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes


Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo



E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales


Maria Teresa Horta

21.3.07

Estou em Belém e respondo a uma chamada da Rádio Táxis. Dirijo-me à cafetaria do Museu da Marinha, junto à explanada. Aguardo uns minutinhos e... nada! Decido entrar e perguntar se conhecem o sr. António Ramos. «Conheço! É aquele senhor que está ali sentado.» Fixo o rosto e não me é estranho – só pode ser o poeta António Ramos Rosa! «É ele mesmo», confirma a funcionária, ao mesmo tempo que se dirige à mesa: «Sr. António, o táxi já chegou!»
[Em tempos, era eu menino e moço, uma amiga introduziu-me no universo poético de Ramos Rosa. Nunca mais lhe perdi o rasto... ]
Viagem curta até à Praça Diu, no Restelo, onde Ramos Rosa vive com a esposa, num lar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Que sensação, conhecer e transportar um grande poeta português que muito admiro! Agora estamos ali, sozinhos no carro, e nem sei bem o que dizer-lhe...
Ramos Rosa não é «pássaro» de gaiola. Quase todos os dias, à tarde, «voa» até à cafetaria do Museu da Marinha. Faz-se acompanhar de um saco com livros e é ali, naquele espaço simpático, que passa parte do tempo. No dia anterior, esqueceu-se de um livro no táxi – um livro importante que está a ler, de um crítico literário francês. O taxista foi devolver-lho e esse gesto deixou o poeta emocionado. Diz-se cansado. Afinal, passa as noites a ler e a desenhar. Depois da meia-noite, quando o silêncio convida a todas as reflexões.
«Gosto muito da sua poesia. E conheço alguns versos de cor...», arrisquei, já na praça que dá acesso ao lar (não cobrei um cêntimo pela viagem... Era o que faltava!). Os seus olhos azuis ficam ainda mais penetrantes. Agita-se no banco de trás: «Não se importa de me acompanhar. Tenho um desenho para lhe oferecer...»
Hesito, mas perante a insistência do poeta e o consentimento da funcionária do lar, lá vou até ao quarto – um espaço digno e amplo com vista para o jardim, uma mesa redonda e livros, muitos livros e desenhos. Senta-se numa cadeira; eu sento-me num sofá. Retira o desenho de uma pasta, escreve uma dedicatória («na alegria deste encontro») e diz-me: «Isto não é um Picasso...; é um simples desenho criativo.»
Agradeci-lhe, comovido, e prometi levar-lhe uma caneta igual àquela com que escreve uma letra miudinha. Hoje não cumpri a promessa, porque é Dia Mundial da Poesia e Ramos Rosa esteve em Odivelas, na inauguração de uma exposição com os seus desenhos. Mas lá estarei com a «tal» caneta especial que brota poesia.

18.3.07

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

Pessoa amiga morreu esta semana num brutal acidente, na Beira Baixa. Estive no funeral e ainda não recuperei do choque. Estes foram dias em que vagueei pela cidade imbuído de pensamentos obtusos, sem disposição emocional para captar as estórias que alimentam este blogue.
Quando assim acontece, refugio-me na poesia de Eugénio de Andrade. Sempre! E também não dispenso José Bação Leal: «Estou bêbedo de tristeza. Desejaria que a noite fosse eterna, que o céu sorrisse pela boca das estrelas... Seria pedir de mais, eu sei. O meu destino não deve comportar desejos etéreos – resta-me converter a dor ao credo das palavras. ‘Tudo, menos a piedade…’, diria o Álvaro de Campos. E diria certo. Mas, às vezes, o coração contorce-se e é necessário sangrar.»

PS – Li numa revista a palavra «catrapiscar» (namorar, piscando o olho) e gostei. Há palavras bonitas que se perderam com o tempo.

7.3.07

O Carlos é o meu companheiro de rendição. Um «fogareiro» nato! Gosta de trabalhar à noite — conhece-lhe os segredos, as «armadilhas», os encantos... E também gosta de acelerar... É conhecido como «falta de ar», porque não pára cinco minutos.
O Zé Carlos, um brincalhão, há dias resolveu pregar-lhe uma partida: na hora da rendição, colocou uma pedrinha por debaixo do acelerador...
No dia seguinte, o Carlos surgiu furioso comigo: «Andas a brincar com isto! O que é que faz aqui esta pedra?» Dei uma desculpa esfarrapada, sem lhe dizer que o Zé Carlos foi o autor da brincadeira.
Ainda assim, o Carlos fartou-se de palmilhar quilómetros, mesmo com o acelerador a meio-gás...

5.3.07

Entra no táxi e olha-me com um sorriso. Também a reconheço de outra viagem. Lembro-me de que se gerou alguma empatia, mas a conversa ficou inacabada, como quase todas nesta vidinha de fogareiro.
[Se tentar reconstituir o dia de trabalho, não consigo recordar-me das caras de muitas das pessoas que transportei; porém, outras ficam-me gravadas na memória...]
– Já nos conhecemos...
– Também me lembro de si!
Tempo para retomar a conversa com a mulher mais sensual que alguma vez entrou no táxi. E rezar para que os deuses me protejam de maus pensamentos...

1.3.07

Casal finlandês em viagem de lazer e negócios. Taina e Kimmo vieram de Helsínquia e estão felizes com este tempo primaveril da capital portuguesa. Nem as filas de trânsito na zona do Marquês de Pombal lhes causam mal-estar. Pudera! Se tivessem de passar por lá várias vezes ao dia... Sugiro-lhes uma visita ao Solar do Vinho do Porto, na Rua São Pedro de Alcântara. Aceito o convite para um brinde em português. Gostaram do espaço e... do néctar.
Kittos! (obrigado)

PS – O Jardim de São Pedro de Alcântara, um dos miradouros mais bonitos de Lisboa, continua em obras! Até quando?!