O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.6.07

Um poema de Eduardo Guerra Carneiro deu o mote a Baptista-Bastos para o seu novo romance, «As Bicicletas em Setembro», que o autor diz não ser mais que uma «metáfora do país sufocado que continua a ser Portugal».
Sou leitor de Baptista-Bastos há largos anos. «As Palavras dos Outros», «Cão Velho entre Flores», «Elegia para Um Caixão Vazio», «Viagem de Um Pai e de Um Filho pelas Ruas da Amargura»... são bons livros, mas «Cidade Diária» é um dos meus favoritos. Um hino a Lisboa!
Vou fazer uma pausa nas «corridas» e na bagagem, bem fresquinho, está o novo livro de Baptista-Bastos.

«As Bicicletas em Setembro fala de trajectórias amorosas, da beleza perversa das relações humanas, e de que as pessoas suportam tudo, menos a solidão, a separação e a perda. É uma parábola sobre perdedores – todos nós. Porque cada um de nós perdeu alguma coisa.»

26.6.07

Um dia em cheio, não em termos de «folha» (normal), mas de comunicação com gente das mais diferentes condições. Começo na praça do Hotel Altis, transporto dois estrangeiros ao Tagus Park, nada de especial, a não ser o regresso à capital, sempre difícil àquela hora da manhã. Congresso internacional de cardiologia na antiga FIL, na Junqueira. Um-ver-se-te-avias a transportar médicos de regresso aos hotéis. Pergunto a dois espanhóis se o congresso trouxe melhorias para o nosso coração, dizem-me que sim, que há sempre novidades. E logo um deles põe o dedo na ferida: «Usted fuma?!»

Xabregas. Transporto um casal de idosos ao Hospital Pulido Valente. Ele (Augusto) já ultrapassou os 90 anos, mas revela grande lucidez e razoável mobilidade; ela (Isaura) tem mais dificuldade em movimentar-se. Vivem sozinhos e o familiar mais chegado, um sobrinho, está internado com doença grave. Ajudo-os a entrar e a sair do carro. Quando estou a despedir-me, ele quer gratificar-me, já depois de me ter pago a «corrida». Perante a minha recusa, ela insiste: «Aceite! O senhor foi tão amável...»

Praça do aeroporto (partidas). Casal turco está em trânsito para Bragança, a fim de participar numa conferência no âmbito da União Europeia, e dispõe apenas de duas horas para visitar o «centro» de Lisboa, a «parte antiga». Falam francês e dou a voltinha habitual: alto do Parque Eduardo VII, Avenida da Liberdade, Rossio, Rua do Ouro, Terreiro do Paço, Castelo de S. Jorge, Miradouro de Santa Luzia... Gastamos hora e meia e... sem visitar os Jerónimos. Não pode ser! Convenço-os a seguir por Belém, rumo ao aeroporto.
«Teshekkur» (obrigado em turco).
PS – Tempo para falar do difícil processo de adesão da Turquia à União Europeia. «É uma questão essencialmente política!», defende o meu cliente.

Praça do Hotel Continental. Tem 50 e poucos anos (deduzo), é advogado e foi «mordido» por cancro nos pulmões. «Fumava mais de dois maços de cigarros por dia e agora estou fodido...» Sinto um arrepio (sou fumador!), mas tento dar a volta ao «texto», de forma a desanuviar o ambiente. Despeço-me e... dou por findo o dia de trabalho. Uff!!!

25.6.07

Ideias para Lisboa

As manhãs de sábado são de pouco trabalho e muitas leituras. Não dispenso o semanário «SOL» e muito em especial as crónicas do seu director, José António Saraiva. A última foi dedicada a Lisboa, que vive momento eleitoral. Transcrevo-a, com a devida vénia, neste cantinho pessoal.

Em lugar de falar dos candidatos, parece-me mais útil aproveitar esta época eleitoral para fazer sugestões para Lisboa.
Já fiz algumas, no passado, sem quaisquer resultados.
Uma delas foi a cobertura da Rua Garrett, da Rua do Carmo e da Rua Nova do Almada com uma grande clarabóia de vidro, à semelhança da galeria Victor Emanuel, em Milão, tornando o Chiado um grande centro comercial de lojas tradicionais.
Outra foi a transferência da Feira do Livro para a zona do Rossio, Praça da Figueira e Martim Moniz, ligando as três praças, chamando mais gente para o centro da cidade e dando-lhe um ambiente de festa – ao mesmo tempo que a feira beneficiaria da presença de esplanadas e lojas à volta (abertas à noite), que a tornariam mais atractiva.
E o facto de aquela zona ser abrigada e plana, ao contrário do Parque Eduardo VII, que é inclinado e ventoso, seria um factor de comodidade para os visitantes.
Hoje vou defender outra ideia, não tão original, mas que mudaria a parte ocidental de Lisboa.
Um dos problemas que esta zona tem é a difícil ligação ao rio.
Embora se estenda ao longo do Tejo, a faixa que vai do Terreiro do Paço a Algés não tem praticamente contacto com ele.
Porquê?
Essencialmente, porque a linha férrea funciona como uma barreira de arame farpado que corta o acesso à zona ribeirinha dos lisboetas que moram nessa parte da cidade.
Os pontos de ligação resumem-se a meia dúzia de passagens aéreas e dois túneis, o que além de pouco prático é ridículo numa frente tão extensa.
Por isso, em algumas propostas para Lisboa, defendeu-se o desnivelamento da linha férrea naquele troço – investimento que se verificou, porém, ser pouco rentável para a companhia.
E o problema foi-se arrastando sem solução à vista.
Sucede que, agora, a solução está na cara.
Só não a vê quem não quer.
Quando a linha de Cascais foi construída, no princípio do século XX, a zona a Ocidente do Cais do Sodré não passava de «arrabaldes».
Havia lá meia dúzia de palácios, outras tantas quintas, uns monumentos erguidos na praia em memória de tempos passados – como os Jerónimos – e pouco mais.
Entretanto, Lisboa cresceu para aí.
A Exposição do Mundo Português, em 1940, atraiu gente e serviços.
Alcântara, Belém, Pedrouços e Algés encheram-se de vida.
E hoje, 100 anos passados, não faz qualquer sentido aquela zona ser atravessada por uma linha de caminho-de-ferro.
Tratando-se de uma zona urbana, tem de ser bem servida por transportes urbanos.
Juntando 1+1, ou seja, a vantagem de «enterrar» a linha férrea e a necessidade de dotar a parte ocidental de transportes «de cidade», o que resulta?
Obviamente, acabar com o comboio entre o Cais do Sodré e Algés, e prolongar até aqui o Metropolitano.
Julgo que obra mais óbvia não existe em Lisboa.
Com a vantagem de ser uma obra de futuro.
Porque, ao contrário de certas áreas da cidade que estão relativamente estabilizadas, a parte ocidental está em constante evolução.
A zona ribeirinha, mesmo com os actuais condicionamentos, vai-se desenvolvendo – como se vê pelos bares e restaurantes das docas em Alcântara, pela animação na área de Belém e pelas instalações previstas para o local da Docapesca.
O turismo não pára todos os anos de aumentar – e em Belém situa-se parte importante da oferta turística lisboeta, como o Museu dos Coches, o Palácio de Belém, os Jerónimos, o CCB, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o Museu de Marinha, o Museu de Arqueologia e Etnografia, o Planetário.
Finalmente, há projectos imobiliários de grande fôlego previstos para Alcântara, e novas urbanizações que têm surgido no lugar ocupado por antigas fábricas, no tempo em que ali era uma zona industrial.
Saída do troço da linha da CP entre o Cais do Sodré e Algés, e sua substituição por uma linha de Metropolitano – aqui fica mais uma sugestão para Lisboa.
Com poucas esperanças de que venha a ser aproveitada.

19.6.07

Os idosos, apesar das dificuldades económicas, são grandes utilizadores de táxi. Compreende-se, devido à falta de mobilidade. Tenho muito carinho por estes clientes especiais. E também alguma paciência. Falam-me das mazelas, dos filhos ausentes, das dificuldades da vida. Hoje estive um bom quarto de hora a ouvir uma senhora... ligada à corrente. Precisava de desabafar, de matar a solidão... Fiquei a saber que Portugal tem das melhores termas a nível mundial, para certo tipo de tratamentos. S. Pedro do Sul e Caldas da Rainha estão entre elas, sendo que estas últimas, fundadas pela rainha D. Leonor, em 1485, são das mais antigas a nível mundial.

Quem visita as Caldas da Rainha, não se apercebe necessariamente da sua singularidade. Constata tratar-se de uma cidade simpática e acolhedora, onde se come bem e vive ainda melhor. Aprecia o agradável parque dominado pelo lago, visita o incontornável mercado de frutas e legumes na Praça da República, espreita com curiosidade as lojas que comercializam o artesanato local, tornado famoso por Rafael Bordalo Pinheiro, autor do conhecido Zé Povinho.
As Caldas, no entanto, são muito mais que isso: acolhem nada mais nada menos que o primeiro – e, durante muito tempo, o único – hospital termal do Mundo, de cujo património fazem também parte as igrejas de Nossa Senhora do Pópulo e de São Sebastião, a Mata Rainha D. Leonor, o Parque D. Carlos I e o Museu do Hospital e das Caldas. Lugares, todos eles, interessantes e cuja visita constitui um verdadeiro mergulho na História. Esta viagem no tempo remonta a 1485, ano em que D. Leonor, mulher dedicada às artes e à assistência aos necessitados, mandou edificar o hospital. Tal iniciativa terá sido tomada depois de, ao passar na zona, a rainha ter observado gente humilde a banhar-se em água enlameada para acalmar dores e sarar feridas. Como padecia de uma úlcera no peito, resolveu seguir o exemplo e ficou rapidamente curada. Chamou-lhe Hospital de Nossa Senhora do Pópulo, pois era ao povo que se destinava. Por outro lado, tal designação invoca uma igreja romana muito apreciada pelo cardeal de Alpedrinha, figura fundamental nas negociações com o Papa para que este autorizasse a construção do edifício. Cerca de três anos depois a unidade hospitalar recebia os primeiros doentes, ministrando-lhes os tratamentos comuns na época e usando como meio terapêutico as águas minero-medicinais que estiveram na sua origem, assim como da povoação que foi crescendo à sua volta.

Rotas & Destinos

17.6.07

Um táxi foi atingido por uma bala perdida, esta manhã, na zona das partidas do Aeroporto de Lisboa. Apesar do susto, o ocupante da viatura saiu ileso. Pelo estilhaço que provocou, a bala terá vindo de longe e pode até ter atravessado toda a pista do aeroporto até chegar ao táxi. O supervisor do aeroporto garantiu à SIC que se a bala tivesse atingido um avião o plano de emergência daria resposta ao problema. Fica por explicar como é que um projéctil de 9 mm atinge uma zona onde passam milhares de pessoas por dia. O caso está a cargo da Polícia Judiciária, que recolheu o projéctil. A munição é de 9 mm, um calibre de guerra proibido a civis.

Eu estava lá, na mesma fila, a 15/20 metros do táxi atingido. Não pensei em «bala perdida» – pensei, isso sim, em bala a sério, quando vi o vidro estilhaçado.

14.6.07

Lisboa a meio-gás, devido aos feriados. Valem-nos os estrangeiros e em especial o congresso internacional de radiologia, no Centro Cultural de Belém. Transporto duas médicas israelitas. Estão pela primeira vez em Lisboa. Uma delas, Michal (lê-se Migal), não se cansa de elogiar a capital e os portugueses. Comeu sardinhas e esteve na Avenida da Liberdade, na noite passada, a ver desfilar as marchas de Santo António. «Toda!» (obrigado em hebraico).
Hotel Altis. Transporto dois casais gregos ao Oceanário, no Parque das Nações. Entendemo-nos em espanhol e fiquei a saber que estão pela primeira vez em Lisboa, com excepção de um deles, que esteve cá em 2004 a assistir ao Campeonato da Europa. O futebol dá muito jeito para estabelecer diálogo quando não há muito para dizer. Noto que o meu interlocutor percebe da matéria! Fala-me com simpatia de Fernando Santos, treinador do Benfica que deixou boa aura em terras helénicas. E também de Karagounis e Katsouranis,
jogadores gregos que vestiram de encarnado na última época. Relembramos a final de 4 de Julho de 2004. E o golo de Charisteas, que ditou a derrota de Portugal. Diz-me que não vai deixar Lisboa sem passar pelo Estádio da Luz, para mostrar aos amigos o local onde o futebol grego teve um dos seus momentos de glória. Despedi-me com cortesia dos meus clientes gregos. Ou com um sorriso amarelo? «Efharisto!» (obrigado em grego).

11.6.07

Foi apanhado nas malhas da droga. Agora, aos 40 e poucos anos, está a tentar libertar-se da maldita heroína, mas não é fácil... Cumpre um programa de recuperação à base de metadona. Há dias adormeceu e não foi (à carrinha branca) abastecer-se da dose diária. Ficou extremamente nervoso e impaciente. Desabafou comigo, pela primeira vez. A «coisa» não é para brincadeiras... A dependência das drogas duras é um caso muito sério! O melhor é não experimentar aquela porcaria... Que sofrimento!

8.6.07

Praça de táxis do Hotel Altis. Enquanto aguardo o cliente que tarda em chegar, observo o movimento da Rua Castilho, zona de escritórios. Um grupo de jovens executivos aproxima-se. Fatos em tom cinzento, gravatas berrantes de cores fluorescentes (vermelho, rosa, verde-alface...), em dia de muito calor. A gravata tornou-se um adorno obrigatório em certas categorias profissionais.
Não me sinto bem com aquela coisa pendurada no pescoço, mas há dias teve de ser! Casamento oblige! Aguentei estoicamente a cerimónia, mas quando cheguei ao restaurante o estranho objecto voou, como que por milagre, para o bolso do casaco, enquanto os meus parceiros de mesa mantiveram a postura até ao fim. Louvo-lhes o sacrifício!
Afinal, não estou sozinho nesta aversão às gravatas... Verifiquei, com agrado, que tenho pelo menos um compagnon de route. Na final da Taça de Portugal, conquistada pelo Sporting, mal o árbitro apitou para o fim do jogo o técnico Paulo Bento tratou de tirar a gravata verde-alface que adoptou desde que chegou a técnico principal dos leões. Gostei da atitude!

2.6.07

Logo pela manhãzinha, calha-me um serviço para a zona do Montijo — um inglês que se dirige a uma plantação de tomates. Regresso, faço meia dúzia de «corridas» e paro na praça do Hotel Altis — um casal brasileiro, de Salvador da Baía, propõe-me uma visita (guiada) pela cidade.
O primeiro cliente veio importar tomates para Inglaterra (Portsmouth). Manuel Fernandes, Cristiano Ronaldo, José Mourinho e agora Nani e Anderson... Afinal, somos exportadores de futebol e... também de tomates! (fiquei agora a saber). Além da cortiça para a Rússia!
Os meus clientes brasileiros estão encantados com Lisboa. Querem conhecer a parte antiga. Passeio pelo Bairro Alto, Madragoa, Alfama... Comparam-na a Salvador da Baía (ou vice-versa). Com uma diferença: a capital portuguesa está restaurada e muito mais bonita. Dizem eles!
Estes sinais levantam-me o ego. Afinal, um país que até exporta cristianos ronaldos, nanis, mourinhos e... tomates, tudo produtos de primeira qualidade, só pode ter um grande futuro!