O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

31.1.08

A arte de mentir

Leio o artigo de António Barreto, no «Público», e não resisto a partilhá-lo com os meus amigos leitores, aqui neste «cantinho» fogareiro.

Têm várias designações. Assessores. Conselheiros. Encarregados de relações com a imprensa. Agentes de comunicação. Ou, depois do choque tecnológico, press officers e media consultants. Sem falar nos conselheiros de imagem. Povoam os gabinetes dos ministros, dos secretários de Estado, dos directores-gerais, dos presidentes e dos gestores. Vivem agarrados aos telemóveis, aos Black Berries, aos Palms e aos computadores. Falam todos os dias com os administradores, directores e jornalistas das televisões, das rádios e dos jornais. Dão, escolhem, programam e escondem notícias. Mostram aos políticos e aos gestores o que é do interesse deles. Planificam a informação. Calculam os efeitos e contam as referências feitas na imprensa. Tratam da imagem, compram camisas para os seus mestres, estudam-lhes as gravatas, preparam momentos espontâneos, formulam desabafos, encenam incidentes e organizam acasos. Revelam a intimidade que se pode ou deve revelar.Calculam os efeitos negativos de uma decisão sobre os impostos, que articulam com as consequências positivas de um aumento de pensões. A fim de contrabalançar, colocam o anúncio de Alcochete logo a seguir ao do referendo europeu. Fazem uma planificação minuciosa das inaugurações.
Escrevem notícias com todos os requisitos profissionais, de modo a facilitar a vida aos jornalistas. Mentem de vez em quando. Exageram quase sempre. Organizam fugas de imprensa quando convém. Protestam contra as fugas de imprensa quando fica bem. Recompensam, com informação, os que se conformam. Castigam, com silêncio, os que prevaricaram. São as fontes. Que inundam ou secam.
Os jornais parecem-se uns com os outros. As notícias são quase iguais. As agendas das redacções são gémeas. Salva-se, desta uniformidade, aqui e ali, quem assina o que escreve. Os noticiários das televisões têm agendas iguais. E alinhamentos de notícias também. Os directos, grande vício da televisão portuguesa, são iguais em todos os canais. Cada vez mais, a informação está previamente organizada, não pelas redacções, não pelos jornalistas, mas pelos agentes e pelos assessores. Quem tem informação manda em quem investiga, escreve e transmite. Grande parte da informação é encenada e manipulada, de acordo com as conveniências. Há informação reservada para melhores momentos, informação programada para dramatizar, informação inventada para divertir e informação acelerada para consolar. Isto acontece há anos. Em Portugal e no mundo inteiro. Todos os anos, a situação piora. Com Sócrates, refinou. O poderio das organizações de comunicação é avassalador. A opinião pública não tem meios para escolher e resistir. Só a independência dos jornalistas poderia fazer frente a este domínio inquietante. Mas esta é um bem raro. Até porque os empregos na informação são cada vez mais precários.
A recente polémica sobre as agências de comunicação, novo episódio numa longa série, mostrou esta actividade no seu pior. As mesmas agências comunicam a favor dos adversários, da política e da economia, da polícia e do ladrão, do Governo e da imprensa. Do atirador e do alvo, como disse Pacheco Pereira.
Até a Entidade Reguladora para a Comunicação, sem ver os efeitos nefastos, achou por bem ter uma agência a tratar da sua informação. O Governo tem a sua. Luís Filipe Menezes também: em vez de denunciar a prática do Governo, quis imitá-lo. Foi preciso Santana Lopes, em momento inspirado, opor-se a este despotismo: «O modo e o conteúdo da comunicação fazem parte do domínio da liberdade absolutamente inalienável de cada deputado.»
Luís Marques, jornalista há várias décadas e com experiência da redacção, da direcção e da gestão da informação, em jornais e na televisão, fez há poucos anos um pequeno estudo sobre as «agendas» de informação. Chegou a resultados surpreendentes. Contando apenas os grandes órgãos de informação generalistas e nacionais, com exclusão das secções mundanas e outras, havia em Portugal cerca de 1500 profissionais. Para os alimentar de informações, os assessores, as agências de comunicação e outros somavam quase 3000. Quer dizer, por cada jornalista em actividade na informação política e económica, dois profissionais preparavam as agendas e as notícias. É esta gente que inunda as redacções com «factos», «eventos», «oportunidades» e «situações». Qualquer redacção tem dificuldade em resistir-lhe. Se, às 20h00, o primeiro-ministro sai de um lar de idosos, entra numa creche ou produz uma declaração espontânea, como pode uma redacção decidir não estar presente? É este exército o responsável por grande parte das «entradas» que, durante a manhã, enchem as agendas das redacções.
Num grande canal de televisão, essas entradas podem hoje chegar às mil por dia, enquanto eram cerca de cem há quinze ou vinte anos. Na agenda diária da redacção de um canal de televisão, perto de um terço das entradas (mais de trezentas...) é feito directamente pelas agências de comunicação e pelos assessores dos gabinetes e das instituições. Mais ainda, é aquela brigada que, muitas vezes, sobretudo na informação económica, redige as notícias.Nas redacções, povoadas hoje por jovens estagiários e inexperientes, mas também por seniores preguiçosos, publicar directamente as notícias assim preparadas, ainda por cima por jornalistas e antigos jornalistas treinados, é a solução mais simples. Por isso, é frequente vermos, sem menção de publicidade, notícias económicas absolutamente iguais em vários jornais.
Há quem pense que é isto a modernidade. A informação racional da época contemporânea. O sinal da eficácia. O instrumento da transparência. Mas desenganem-se os crédulos. O objectivo dos assessores e das agências de comunicação é sempre o de defender os interesses do autor da informação, nunca do destinatário, do cidadão. A única preocupação do agente é a de vender o mais possível, nas melhores condições, bens ou ideias, mercadorias ou decisões. Os agentes de comunicação não defendem os interesses dos compradores, dos consumidores ou dos espectadores, mas tão-só dos vendedores, dos produtores e dos autores. Apesar de pagos pelos eleitores, servem para defender os eleitos. Este é o mundo em que vivemos: a mentira é uma arte. Esta é a nossa sociedade: o cenário substitui a realidade. Esta é a cultura em vigor: o engano tem mais valor do que a verdade.

António Barreto, sociólogo – «Público», 27-Jan-08

30.1.08

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Cesário Verde

27.1.08

O José do Telhado não se chama João

Vivo em Lisboa desde 1966 e tenho tido sempre o meu trabalho e a minha casa por aqui: Rua do Ouro, Chiado, Camões, Bairro Alto, Santa Catarina. O mesmo é dizer livrarias, antiquários, editoras, leiloeiros, alfarrabistas. A Moraes, editora dos meus primeiros livros, era no Largo do Picadeiro e passou para a Rua do Século. O jornal onde comecei em 1978 (Diário Popular) era na Rua Luz Soriano.
Mas ia nos alfarrabistas. Tem chegado gente nova ao ramo com os seus telemóveis, faxes, e-mails, blogs, sites, boletins. E alguma prosápia muito juvenil. Há dias tive nas mãos um boletim bibliográfico que, embora datado de Dezembro de 2008, é de Dezembro de 2007, até porque estamos em Janeiro de 2008 e ainda não chegámos lá. Um dos livros referidos é sobre a revolta militar da Ilha da Madeira, em 1931, mas, por óbvio lapso, o autor refere que a dita revolta procurava «instaurar» a I República. «Instaurar» não; quando muito «restaurar», porque ela já tinha sido instaurada em 1910.
Mas onde me pareceu que o absurdo se tinha instalado de armas e bagagens foi nas referências ao Zé do Telhado, aqui referido como João do Telhado. Não, não pode ser. José Teixeira da Silva não se chamava João. Nascido em Penafiel no ano de 1816, José Teixeira da Silva veio a morrer em Angola (Sanza), para onde foi degredado pelos muitos assaltos da sua quadrilha formada em 1849. Antes tinha recebido a Torre e Espada, por ter salvo a vida do visconde de Sá da Bandeira. Pelo meio aparece ao lado de Camilo Castelo Branco nas cadeias do Porto e no livro «Memórias do Cárcere». Mas sempre como José Teixeira da Silva, nunca foi João. Por mais voltas que dê um qualquer boletim bibliográfico editado em Dezembro de 2007.

José do Carmo Francisco

25.1.08

Polícia sinaleiro e poeta popular

Foi polícia sinaleiro em Lisboa. O sr. Marques está reformado e dedica-se agora à poesia. Durante a viagem Avenida de Roma-Hospital Militar da Estrela não parou de conversar. É um daqueles «velhotes» simpáticos, faz-me lembrar o «Cuca», da Amadora, também ele poeta popular e homem-dos-sete-instrumentos. O sr. Marques, na sua lucidez, insurge-se contra José Sócrates: «Aumentou a idade das reformas porque aumentou a esperança de vida. Mas nós não vivemos... Vegetamos!» Pois...

«Ó sr. Marques, venha cá...
temos muito que falar...
O dinheiro que me deve
quando é que me o há-de dar?»

«O dinheiro que lhe devo
tenho tempo de lhe o dar
Se não ganho pra comer
quanto mais pra lhe pagar...»

Fixei estes versos. Às tantas, fiquei imobilizado no trânsito e o sr. Marques não perdeu tempo:

«Tal como quem chupa um rajá...
... a gente há-de chegar lá...»

Final da corrida, as despedidas:

«Como nasci no Brasil
e sou português...
Talvez voltemos a encontrar-nos
uma próxima vez...»

Talvez...

24.1.08

Desejaria escrever algo para dedicar a alguém, hoje, mas não consigo. Estou a sangrar por dentro e tudo o que possa afirmar, nesta situação, soará a falso. Socorro-me de um curto mas belo poema de Sophia de Mello Breyner, sem mais palavras...

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua

23.1.08

Sobre uma fotografia de Nuno Ferrari

Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
O trabalho, a pressa de chegar, o jogo das obrigações, deixam-no, por agora, indiferente.
Ele vira as costas ao trânsito da Vida e caminha para a máquina, para o magnésio que lhe dará a revelação duma serena amargura.
A sua vida está suspensa nesse momento preciso. Lesionado, impedido de jogar, toca nele, dentro dele, uma música triste.
Por isso se afasta do rio, do silêncio da água ou da neblina da manhã já alta.
As colunas do cais são um termómetro gigante a medir a amargura duma exclusão.
Há um homem que caminha contra o movimento do Mundo.
Apanhado na trama secreta dum acaso infeliz, desloca memórias de tardes entre sol e pó,
à procura dos longos abraços dos companheiros a correr do outro lado do campo.
Por isso não olha em frente a objectiva, não se enquadra nas sombras, nas rugas, na duvidosa estrada do futuro.
Imaginamos que ao lado passaram aves, rápidas, tensas, como urgentes vírgulas no tempo deste homem.
Passam ou passaram a caminho do Sul mas este homem não teve a esperança do calor, nem do sal das praias nem do corpo efémero das ondas.
O seu olhar era amargo, demasiado real para o magnésio da verdade, demasiado forte para a revelação dum pequeno mundo a ser destruído.
José do Carmo Francisco

21.1.08

«Vamo-nos perdendo uns aos outros»

(...) «Que surpresa! Há anos que não só não nos vemos, como também não tenho notícias tuas. É assim, vamo-nos perdendo uns dos outros, mas, felizmente, de vez em quando os reencontros (nem que sejam por entrepostos blogs e mails) reservam-nos surpresas agradáveis.»

Gostei imenso de receber este mail de um amigo de infância que não vejo há largos anos. «Vamo-nos perdendo uns aos outros», é bem verdade, mas estamos vivos e sempre a tempo de pôr a escrita em dia...

19.1.08

Hermínia foi professora de línguas. Reformada, mora num dos sítios mais bonitos de Lisboa, a Senhora do Monte, na Graça. Esta foi a segunda vez que a transportei e ainda se lembrou da nossa conversa anterior. Contou-me uma história que tentarei aprofundar. O Largo das Olarias foi construído em cima do cemitério dos judeus. E os lisboetas, durante muitos anos, não quiseram lá morar. Hermínia justifica: «Imagine que mudavam o cemitério do Alto de São João e se lembravam de construir casas naquele local. Ninguém ia para lá morar... Só ao fim de algumas gerações, como aconteceu no Largo das Olarias.»
Aconselhou-me a comprar um livro de Raul Proença, na Gulbenkian, que fala sobre Lisboa.

17.1.08

Pausa para tomar um cafezinho com José do Carmo Francisco, no Bairro Alto. Surpreendeu-me com a oferta do seu último livro, «Mansões abandonadas». Uma antologia poética publicada pela editora brasileira Escrituras, de São Paulo. O meu amigo tem boas razões para estar feliz. Não é por acaso que a sua poesia galga fronteiras. Fiquei sensibilizado com o seu gesto. Ainda há gente assim, capaz de oferecer um livro!

«A sociedade actual apela para a distracção ao invés de apelar para a atenção. Apela para a imagem em vez de apelar para a palavra. (...) Vejo com muita apreensão a importância relativa que a poesia venha a ter no próximo futuro. O fast-food já chegou a tudo. (...) »
JCF

16.1.08

Breves

Diverte-me assistir, na praça de táxis do Hotel Altis (Rua Castilho), às escapadelas dos funcionários de escritório para fumar o cigarrinho. Até já colocaram cinzeiros grandes junto às portas de entrada. Antes, as «miúdas» passavam fugidias por entre os táxis; agora estão ali, na rua, bem juntinhas aos taxistas. Até parece que somos todos «colegas»...
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Transporto um casal a Almada. Vêm de Londres, onde trabalham. «Posso fumar um cigarrinho? Estou a ficar desesperado...» Explico-lhe que as «coisas» mudaram em Portugal e alerto-o para as consequências... O homem aguentou mais uns minutinhos e lá atravessámos a ponte 25 de Abril... sem poluição!
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A propósito: estou a aproveitar esta «onda» para fumar menos. Mas não é fácil... Nisto, como noutras situações, faço minhas as palavras de Manuel Cajuda e tento «reagir com inteligência». Será desta que consigo deixar de fumar?
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Ainda a propósito do tabaco (não tenciono voltar ao assunto): acredito que Humphrey Bogart e Ingrid Bergman foram os grandes «culpados» por eu ter começado a fumar. Aquela cena do filme «Casablanca» mexeu comigo... Aquele jeito de puxar pelo cigarro, de acender o cigarro... Aquela mulher!