O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.2.08

CEMISTÉRIO

Aqui se fixam as diferenças
até na morte como mercadoria.

Dinheiro em pedra nos jazigos;
campas pobres só com a terra
– por detrás dos muros, prédios,
vozes, gente que faz barulho
e estende roupa para este sol.

Pode chegar-se aqui de táxi
ou também de autocarro.

Nas flores mais secas
se vai perdendo a luz.
Outras memórias, palavras,
São o lixo deste dia.

Um tempo para dizer este tempo
quando o relógio se cansa
e perde os ponteiros do coração,
um tempo para lembrar
as flores tão verdadeiras
num frasco de tofina bem lavado.

Outras facturas, outro dinheiro
se perdem nesta morte a prazo.

Morre-se também na tarde,
perguntando sempre à morte
qual a diferença de luz
entre o mármore e a terra.
José do Carmo Francisco

20.2.08

Rosa Luz

Há uma rosa a arder. Já não é lume
Apenas foco de luz sem combustão
No fósforo mal aceso deste ciúme
Só sobejaram os sinais da tua mão

A tua boca foi o botão anunciado
Os teus dedos o que ficou da haste
Procurei a tua voz em todo o lado
Mas foi na rosa ardida que ficaste

José do Carmo Francisco

17.2.08

«Estórias»

«Então a palavra história agora escreve-se sem agá?!», questionou-me pessoa amiga, a propósito do subtítulo deste blog («Estórias de um motorista de táxi de Lisboa»).
Tive o privilégio de privar com Carlos Pinhão. Os seus livros contam-nos «estórias» deliciosas. Beber no quotidiano e transformá-lo, era a sua arte; escrever sobre futebol fazia igualmente parte dos seus múltiplos talentos: jornalismo, teatro, literatura juvenil, humor, poesia...
A primeira vez que li a palavra «estória» (hoje de uso corrente) foi num texto de Carlos Pinhão. Questionei-o e ele disse-me que era para distinguir a(s) pequena(s) história(s) da grande História (cronológica).
Aliás, como tantas outras expressões que ele inventava para dar cor à prosa, torná-la mais atraente. Afinal, a língua não é imutável e, hoje em dia, a palavra «estória» até já está registada nalguns dicionários.

PS – Carlos Pinhão nunca teve carro – vivia em Alvalade e viajava nos transportes públicos, mais de táxi, quando saía do jornal a altas horas da noite. «Ai que saudades, ai... ai...» deste homem maravilhoso, perpetuado numa rua de Lisboa, nas Olaias.

14.2.08

Dança comigo (sobre um óleo de António Carmo)

Não sei dançar. Nunca senti no meu corpo o motor do ritmo, a locomotiva que prolonga e amplia, nos salões ou nos jardins, a alegria de uma música vivida a dois.

Não sei dançar. Nem sei se alguma vez entrarei na difícil empresa de celebrar uma festa situada entre os pés ligeiros, soltos, e o olhar que os comanda, firme.

Não sei dançar. Nunca dancei mas, ao ver o teu olhar dentro da luz do óleo de um quadro, entre a casa à direita e a árvore à esquerda, com a viola campaniça ao centro, então, só então, sabendo que és mesmo tu, serei capaz de, tímido e receoso, te pedir em voz muito baixa: «Dança comigo!»
Não, como é lógico, para dançar mas, apenas e só, para juntar as minhas mãos às tuas e, em silêncio, esperar que a música da viola campaniça atravesse toda a linha do horizonte da planície e venha depositar a teus pés todo o perfume das searas e da terra.

José do Carmo Francisco

Terceira balada para Luciana

Luciana quase menina
Tem o jeito de mulher
Lavando na sua rotina
Chávena, pires, colher

Envolvida numa espuma
As mãos na água quente
Não pensa coisa nenhuma
É trabalho transparente

Fica um balcão brilhante
Com brilho do seu asseio
O seu olhar tão distante
Lembra lugar donde veio

Nem repara que na mesa
Se veio sentar Cesário
Chegou aqui de surpresa
Ficou sentado ao contrário

Para a Rua dos Fanqueiros
Fica a loja de ferragens
Os poemas tão pioneiros
São a força das imagens

O conde de Monsaraz
Vem a chegar em atraso
O café dá-lhe outra paz
Quando ele sai ao acaso

Pelas ruas desta Baixa
Melancolia não tem fim
E o pobre com a caixa
É um professor de latim

Luciana sorri, continua
Põe ordem no seu balcão
O poema vem para a rua
Transforma-se em canção

José do Carmo Francisco

10.2.08

Agostinho da Silva – «O que é ser moderno»

Agostinho da Silva (1906-1994) nasceu em 13 de Fevereiro e numa breve evocação poderemos lembrar a sua figura com duas frases. Espírito livre, inconformista e original em todos os domínios, são dele estas palavras sobre o que é ser moderno: «Ser moderno não significa ignorar tudo o que forma o antigo; significa não deixar que perca alma tudo o que de eterno lhe oferece o presente.»
Sobre as críticas e os elogios que lhe chegavam ao Príncipe Real (onde vivia com os seus gatos e os seus sonhos) ficou esta ideia: «Não me importa nada que me critiquem. Exactamente como não me importa nada quando me elogiam. Tanto faz que uma pessoa me elogie como me censure, eu considero aquilo como uma opinião pessoal e não comparo com coisa nenhuma, porque eu próprio não tenho opinião pessoal a meu respeito. Não me sinto nem herói nem criminoso; sinto que vivo, sinto que sou.»

Texto recolhido por José do Carmo Francisco

8.2.08

É um dos restaurantes mais badalados de Lisboa, o Bica do Sapato, junto a Santa Apolónia, mas virado para o Tejo e bem perto de outro espaço «in» da capital, a discoteca Lux. Somos lá chamados frequentemente, através da Rádio Táxis, para transportar os seus clientes.
Hoje, a meio da tarde, tocou-me um espanhol de Salamanca, falador e bem-humorado. Na viagem até ao aeroporto não se cansou de dialogar comigo, elogiou a luz de Lisboa, «única», e não entende a «falta de auto-estima» dos portugueses, «capazes de grandes feitos, quando acreditam».
Digo-lhe que talvez a «culpa» não seja só dos portugueses, mais até de uma certa classe político-económica que detém o poder. Concorda comigo, em parte, e lembra-me que a Espanha teve apenas quatro primeiros-ministros desde que terminou o franquismo, ao invés de Portugal, que já conheceu largas e bruscas mudanças de governação desde o 25 de Abril. Agora é a minha vez de concordar, mas só em parte, também, porque a ideia pressupõe uma certa «estabilidade» e não gosto desta palavra, pelo menos no contexto em que tem sido utilizada em Portugal.
A conversa flui e, às tantas, o meu cliente espanhol dispara: «A Administração pública portuguesa parece que está contra os cidadãos. Não procura resolver-lhes os problemas, antes arranja forma de os complicar.» Fiquei a meditar nas palavras do espanhol... E nas medidas postas em prática por um certo ex-ministro da Saúde...

Sócrates e o lixo debaixo do tapete

João Miguel Tavares, jovem jornalista, assina crónicas interessantes no «Diário de Notícias». A mais recente chama a atenção para as opções de quem decidiu a primeira página do «Público» no dia em que o jornal divulgou a investigação sobre os projectos assinados por José Sócrates.

José Sócrates está tramado. Não há forma de sair airosamente deste novo Civilgate, agora descoberto na Guarda. Se a notícia do «Público» for verdadeira e ele realmente tiver andado a assinar projectos alheios, é uma tragédia ética. Se a notícia for falsa e aquelas moradias tiverem mesmo saído da sua cabecinha, é uma tragédia estética. Entre o bem e o belo, é natural que Sócrates se agarre ao bem, que é qualidade mais apreciada num político, mas quando olhamos para aquelas fotografias de casas de emigrantes horrendas made by José damos todos graças a Deus de o homem ter optado pela política em detrimento da engenharia.
Entalado entre dois desastres, Sócrates reagiu de forma desastrada. Eu começo a desconfiar que quem assina o boletim de militante socialista deve ser inoculado com algum vírus que o leva a gritar «cabala» sempre que confrontado com factos desagradáveis. Eu tinha o nosso primeiro-ministro em melhor conta. Transformar uma notícia perfeitamente legítima, bem fundamentada e assinada por um dos poucos jornalistas que em Portugal ainda fazem investigação a sério, num «ataque pessoal e político» é uma pouca-vergonha. Se Sócrates entende que se trata de uma calúnia, então apresente factos - e não gritinhos histéricos.
Eu, pelo meu lado, o que gostava de saber não é porque é que o «Público» persegue José Sócrates - é porque é que o «Público», tendo uma notícia deste calibre nas mãos, optou na primeira página por a colocar em rodapé. É que convém estar atento aos detalhes. Para quem não reparou, a manchete do «Público» na sexta-feira foi «Democracias fecham os olhos aos abusos das ditaduras, denuncia ONG», o que para além da elegância da formulação é algo de tão original quanto dizer que as galinhas têm penas e que os cães fazem ão-ão. Ou seja, aquela primeira página não mostra que Sócrates é perseguido - mostra, pelo contrário, que Sócrates mete demasiado medo a demasiada gente, como depois se comprovou pelo manto de silêncio que caiu sobre as pessoas envolvidas na notícia. E este silêncio, francamente, começa a cheirar muito mal.
É que por muita tolerância que o povo português tenha para com a pequena trapaça - e tem, e muita -, há sempre um momento em que se esgota o espaço debaixo do tapete: empurra-se o lixo, mas ele já não cabe. Para Sócrates, este pode muito bem vir a ser esse momento. Ao garantir, preto no branco, que todos aqueles projectos são da sua autoria e responsabilidade, ele cometeu um erro estratégico: enterrou-se neste caso até ao pescoço. Agora, se for apanhado, não tem como sair de mansinho. Uma mentira destas nem o padre Melícias consegue absolver.

João Miguel Tavares

7.2.08

Uma leitora pergunta-me por que razão não conto, neste cantinho fogareiro, estórias «picantes», daquelas de fazer corar. Quer emoções fortes, é isso!, mas essa não é a minha onda. Em todo o caso socorro-me do Marcelo, um jovem «fuga», para lhe aguçar o apetite... :)

A mulher executiva tem ar cansado. Vem de São Paulo, quase dez horas de avião até Lisboa, e dirige-se ao Restelo, a um daqueles condomínios onde só vive gente «pobrezinha». Na Segunda Circular, o Marcelo espreita pelo espelho retrovisor e verifica que ela adormeceu. Prossegue a viagem, sem a incomodar. Chegam ao destino e ela pergunta-lhe se pode esperar e levá-la, a seguir, ao Lagoas Park, onde tem agendada uma reunião de trabalho. Ajuda-a a transportar a mala pesada até ao elevador. Ela fixa-o e diz-lhe:
– Aguarda um bocadinho? É só tomar um duche e mudar de roupa...
Perante a anuência do Marcelo, ela insiste, com um sorriso maroto:
– Do que eu estou a precisar mesmo é de uma boa massagem...
O resto da estória, contada pelo Marcelo, deixo à imaginação da estimada leitora...

Segunda balada para Luciana

Se aqui entra zangado
Com notícias de jornais
Já sabe que deste lado
O café tem algo mais

Uma força, um perfume
Trazido das plantações
Um calor feito de lume
Com lenha de emoções

Porque o café é diferente
Das bebidas do mercado
Mata o frio com o quente
E o corpo fica encantado

Só me apetece cantar
E entrar no pé de dança
Com a idade a recuar
Quase chego a criança

Uma luz a meio do dia
Intervalo no cinzento
Patrocina uma alegria
Dura além do momento

Saem novos paladares
O calor que se transmite
Há aqui muitos lugares
Neste pequeno limite

Que é o lugar e a mesa
Luciana e seu sorriso
Bebo café na certeza
De que existe Paraíso

José do Carmo Francisco

6.2.08

«Requiem» pela língua portuguesa

A língua portuguesa é maltratada. Os erros são o pão de cada dia, mas ninguém actua, tudo se transforma em produto de consumo e não há meio de prevenir esta calamidade nas páginas da imprensa, na rádio, na televisão, na publicidade, nos «sites»... E não se trata apenas de «gralhas» - a situação é mais grave e induz em erro milhares de leitores. É preciso lutar contra este estado de coisas. Quem não conhece minimamente a «ferramenta» (a língua) não está habilitado a escrever/falar nos órgãos de comunicação social.
Concordo com Diogo Pires Aurélio quando em tempos afirmou, no «Diário de Notícias», que «as questões de linguagem não são iguais às da matemática». Também não caio no exagero de dizer que «há 20 anos se escrevia e falava escorreitamente e que, de então para cá, se caiu na mais completa penúria e ignorância». Então, como agora, havia quem dominasse a língua e quem a tratasse a pontapé, quem se exprimisse correctamente e quem não debitasse senão asneira ou «palha», como diria o Eça.
Dito isto, um erro é sempre um erro, mesmo que as questões da linguagem não sejam iguais às da matemática. Não se trata de exigir a perfeição, mas de higienizar a escrita, sem esquecer, como bem alertou Diogo Pires Aurélio, que há outros aspectos preocupantes como os «emaranhados sintácticos em que não há meio de se perceber do que realmente estão a falar ou a escrever».
É preciso lutar contra este estado de coisas. E se não conseguirmos inverter esta situação, gritaremos como o Almada Negreiros, contra todos os Dantas deste país: «Quero ser espanhol!»

Alguns exemplos de asneiradas publicadas na nossa imprensa (entre parêntesis a respectiva correcção):
· impediu que o negócio se concretiza-se (concretizasse)
· emiratos (emirados)
· pré-definido (predefinido)
· metereológica (meteorológica)
· infraestrutura (infra-estrutura)
· corropio (corrupio)
· concerteza (com certeza)
· retratar-se (retractar-se, desdizer-se)
· bogalhos (bugalhos)
· desplicente (displicente)
· dispender (despender)
· élite (elite)
· inflacção (inflação)
· interviu (interveio)
· inclusivé (inclusive)
· vidé (vide)
· logotipo (logótipo)
· obcessão (obsessão)
· perfomance (performance)
· rectaguarda (retaguarda)
· cheque-mate (xeque-mate)
. conselho (concelho de Lisboa)
. caiem (caem)
. organigrama (organograma)
. traumatismo crâneo-insufálico (crânio-encefálico)

4.2.08

Balada para Luciana

Luciana num balcão
Debruçada no sorriso
Empresta calor da mão
Quando café é preciso

No combate à tristeza
Derramada pela rua
No centro duma mesa
Seu sorriso continua

Não havia o adoçante
Adoça com seu olhar
Simpatia no instante
Faz do balcão o altar

Onde a nova liturgia
Como se numa oração
Celebrando a alegria
Do encontro no balcão

À esquerda é o Chiado
E o Castelo é à direita
O sol bate no telhado
A tarde ficou perfeita

Quando olha para o rio
Não repara na distância
No nevoeiro mais frio
Recorda a sua infância

Em baixo as duas linhas
Além é a Sé de Lisboa
Não há mesas sozinhas
Quando o café se povoa

De gente que não repara
Na pressa, no seu bulício
Luciana então já separa
As tarefas do seu ofício

Tomou o sabor profundo
Do café que nos vendia
Trazendo do seu mundo
Um grão de pura alegria

José do Carmo Francisco