O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

3.4.08

Respondo a uma chamada da Rádio Táxis de Lisboa. Dirijo-me a uma rua próxima do Saldanha, reconheço de imediato o cliente e não consigo disfarçar: «Ora viva! Como está?!» Fixa-me e dispara, como que a testar o taxista: «Conhece-me de onde?» Respondo-lhe que o conheço dos seus livros e que estou feliz por transportar um escritor português que muito admiro.
Dinis Machado! O autor de «O Que Diz Molero» está ali, sentado a meu lado e a dialogar comigo. Viveu muitos anos no Bairro Alto, onde eu também trabalho há mais de quatro décadas. Falámos de muitas coisas durante a viagem. De Carlos Pinhão e Carlos Miranda, de quem foi amigo; de jornalismo desportivo (Dinis Machado escreveu no «Record»); e, claro, dos seus livros.
Li três livros de Dinis Machado: «Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Marquez», «Reduto Quase Final» e... «O Que Diz Molero». Este último, editado em 1977, era de leitura obrigatória naqueles anos agitados pós-25 de Abril; foi como que uma pedrada no charco no (pardacento) mundo literário português, pela sua linguagem inovadora.
Não li os policiais de Dinis Machado (ou melhor, Dennis MacShade, pseudónimo) – «A Mão Direita do Diabo», «Mulher e Arma com Guitarra Espanhola» e «Requiem para D. Quixote» –, mas fiquei a saber que está para breve a sua reedição. Não sou muito dado ao género policial, mas vou experimentar...

Com a devida vénia, fui repescar uma entrevista de Dinis Machado ao «Jornal de Notícias», publicada em 20 de Março de 2007, a propósito do 30.º aniversário de «O Que Diz Molero»:

É como se não tivesse escrito mais nada. Apenas um romance bastou para lhe garantir um lugar de destaque na literatura do século XX. Mas Dinis Machado escreveu outras coisas. A começar nos policiais que assinava com o curioso pseudónimo de Dennis MacShade (uma fórmula irónica e glosar o seu próprio nome), passando pelos romances que publicou posteriormente ao que o tornou célebre e acabando nas poesias que guardou na gaveta. Foi jornalista desportivo, crítico de cinema (a sua maior paixão, porque lhe deu a «conhecer» Greta Garbo) e editor. Agora, aos 77 anos, a saúde traiu-o «um bocado», como ele gosta de dizer enquanto saboreia a cigarrilha proibida pelo médico.
– Como vê, à distância de 30 anos, o fenómeno de «O que diz Molero»?
– Felizmente parece que o que ficou dito no livro e a forma como foi dito tinham alguma importância.... Penso que quem leu este romance ficou atraído pela novidade da linguagem, pela forma como o livro estava estruturado. Foram coisas que na época abanaram o meio literário.
– E isso deixou-o orgulhoso ou preocupado?
– A vitória tem sempre uma componente de derrota. Ganha-se mas também se sente o fel de quando se ganha. Isto tem a ver um bocado com as dificuldades da própria obra. Quando se defronta uma ideia feita, que foi o que fiz com a forma como escrevi o livro, corre-se o risco de desagradar. Tive a sorte de a editora ter gostado do que leu e ter arriscado publicar.
– Afinal, quem é o Molero?
– Será quem o leitor quiser que seja. Ele é uma espécie de essência da própria vida. Nesse sentido diria mesmo que é uma espécie de duplo. O meu duplo. A verdade é que tive aquela vida. A minha infância foi muito ligada a muitas daquelas personagens.
– Como era então essa sua infância?
– Foi magnífica. Cresci praticamente na rua, para desespero da minha mãe, que sempre tentou contrariar esta minha tendência. Vivi até aos 34 anos no Bairro Alto. Era um lugar extraordinário, fervilhante de vida. Ficou-me essa nostalgia e acho que escrevi «O Que Diz Molero» como forma de deixar um registo de passagem por essa vivência.
– Dinis Machado nunca conclui um curso...
– Nunca passei do que agora se chama 12.º ano. Preferia sempre fugir às aulas e ir ao cinema ver filmes de aventuras. Foi a ver filmes americanos que aprendi a falar inglês. Vi e revi os mesmo filmes dezenas de vezes no Cinema Loreto. Acho que tenho uma tentação cinematográfica que transpira nos meus livros.
– Aliás, fez crítica de cinema...
– Sim. Mas comecei no jornalismo desportivo, no «Record». Depois fui para o «Diário Ilustrado» e, ao mesmo tempo, escrevia críticas de cinema para as revistas da época. A determinada altura da minha vida tive um convite para dirigir uma colecção de livros policiais, chamada Rififi. Foi então que «nasceu» o Dennis MacShade, o pseudónimo que utilizei para publicar os meus próprios policiais. Na época, o nome estrangeiro dava-me liberdade para ampliar o meu discurso.
– E foi difícil deixar de ser Dennis MacShade?
– No princípio custou um bocado. Tinha-me habituado à situação e já tinha escrito três policiais e criado a personagem do Peter Maynard, um assassino com preocupações filosóficas. Mas a verdade é que queria mesmo era escrever o Molero. A partir do momento em que o fiz nunca mais voltei aos policiais. Acho que o Dennis MacShade se zangou comigo.
– Foi complicado voltar à escrita depois do êxito esmagador do livro?
– Foi difícil. Olhando para trás e tentando fazer um balanço, começo a ver que, afinal, é tudo muito relativo. Mesmo o êxito. Na época as coisas estavam a acontecer e não se podia evitar a reviravolta na modorra literária. No fundo ajudei a essa mudança.
– Agora vai ser homenageado no dia dos seus anos?
– Aproveitaram a o facto de fazer 77 anos amanhã para lançarem uma edição comemorativa dos 30 anos de «O Que Diz Molero», numa edição da Bertrand, a mesma editora que o publicou inicialmente. O livro é uma espécie de culto. Já teve adaptações ao teatro, em Portugal e no Brasil, e ao cinema (fizeram uma série de animação em seis episódios). Até há clubes de «molerianos» que dissecam a obra de ponta a ponta. Agora fazem-me entrevistas todos os dias. É um bocado anormal, mas entendo o fenómeno. Tudo assenta no impacto que a obra ainda tem nas pessoas, mesmo naquelas que só agora a descobrem.