O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

16.3.09

Domingo. Depois da via-sacra das discotecas, pela manhãzinha, é tempo de descansar e tomar o pequeno-almoço. Segue-se um tipo de clientela bem diferente, mais direccionada para igrejas, hospitais, cemitérios... Tenho verificado, há algum tempo, que a missa dominical da Igreja do Campo Grande é das mais concorridas de Lisboa. Alguma razão especial estaria na origem de tamanha afluência de crentes, oriundos de toda a cidade e não só... Hoje, em conversa com uma cliente, fiquei esclarecido: Feytor Pinto é o pároco daquela paróquia e destaca-se pelas suas homilias. Um padre atento aos problemas actuais dos seus concidadãos.
Esta conversa fez-me relembrar uma célebre entrevista do padre Feytor Pinto ao jornal «Público», há já alguns anos, na qual defendia pontos de vista diferentes de uma certa corrente (hierárquica) da Igreja Católica, nomeadamente em relação ao aborto (em casos expecionais), à educação sexual...
Feytor Pinto, pelos vistos, continua a ser uma voz muito escutada pelos crentes da capital. Basta passar, aos domingos, pelo Campo Grande.

9.3.09

Os três alemães saem bem-bebidos do Lux. E com muita fominha... Exprimem-se em espanhol e perguntam-me se existe algum McDonald's aberto àquela hora (sete da manhã). Abastecem-se de hambúrgeres e rejeito a oferta, porque não sou dado àqueles manjares. Chegados ao hotel, na zona do Parque Eduardo VII, pagam-me a «corrida» e agradecem-me veementemente (a «paciência» que tive para os aturar...). Um deles, sentado a meu lado, pisca-me o olho e tenta impingir-me algo semelhante a um excremento de rato (haxixe?). Recuso, acelero em direcção à pastelaria Ritz e peço um galão morno, uma sanduíche e um café. A seguir, compro o jornal e estaciono na praça de táxis do Hotel Altis (uma das minhas preferidas), fresquíssimo para mais uma «corrida».

8.3.09

É um dos estilistas mais badalados cá da paróquia. Aproveita a viagem de táxi, até à Gare Oriente (rumo ao Porto), para dar instruções às suas assistentes (costureiras). Vem aí a Moda Lisboa e nota-se que está «stressado», mas o que mais me desperta a atenção é um «tal» vestido encomendado por uma «tal» dama angolana. Sou incapaz de revelar os pormenores (nada entendo da matéria), mas deduzo que se trata de autêntica obra-de-arte, esculpida em materiais da mais alta qualidade.
Esta estória do vestido faz-me lembrar outra «corrida», cujas protagonistas também foram damas angolanas, hospedadas num hotel cinco-estrelas. Sacos e mais sacos de roupas compradas em lojas caras de Lisboa. Quem pode, pode... e a crise passa ao lado destas damas angolanas carregadinhas de dólares/euros para «estoirar» na capital portuguesa.

3.3.09

«Quase gosto da vida que tenho»

O cliente pede-me para transportá-lo ao Estoril. O diálogo acontece e fico a saber que estou em presença de um escritor português, não muito badalado, mas de reconhecido valor. O seu nome não me é desconhecido, mais como dramaturgo, mas também de crónicas no «Público». Chegados ao destino, pede-me para aguardar uns minutos, enquanto se dirige para casa. Regressa e oferece-me três livros («Rosa Vermelha em Quarto Escuro»; «A Noiva Judia»; «Quase gosto da vida que tenho»). Fico sensibibilizado com o gesto. Ainda há gente assim... Obrigado, Pedro Paixão!

PS – Mal cheguei a casa, tratei de vasculhar «tudo» (no Google) sobre o meu ilustre cliente. Depois... Bem, depois «ataquei» um dos títulos («Quase gosto da vida que tenho») e prometo, nos próximos dias, não dedicar ponta de atenção aos Freeports do nosso descontentamento. Há «coisas» muito mais interessantes...

«Quase gosto da vida que tenho. Não foi fácil habituar-me a mim. Tive de me desfazer das coisas mais preciosas, entre elas de ti. Sim, meu amor, tive de escolher um caminho mais fácil. O dinheiro também tem a sua poesia. E tenho tido sorte. Deixei para trás a obrigação de mudar o mundo. Já cometi corrupções. Só ainda sinto dificuldades em mentir, mas também aqui vejo melhoras. Trata-se só de deformar ligeiramente o que vai acontecendo, não de inventar tudo de novo. Tenho mais alguns anos diante de mim e depois quero acabar de repente. Não sei se valeu a pena mas também não me pergunto se valeu a pena. Há muitas coisas assim. Não é desistir, é só dar demasiada importância a coisas que não a têm. A vida é uma delas. Ganha um valor particular quando deixamos de a encarar como o centro de tudo. É só por acaso que gostamos das flores e do mar. E, claro, que é um bom acaso. Mas mais do que isso não. Quase gosto da vida que tenho. Quando a quis toda não gostava de mim. Agora há dias em que aceito que o tempo passe por mim e me leve para onde só ele sabe.
...Vivo sozinho. Passam pessoas, mas nunca ficam por muito tempo. A partir de certa altura intrometem-se tédios por entre as frases e não sabemos continuar. Não insisto. Há muitas pessoas. Não vale ter medo. Há muito que o amor mostrou ser um fracasso. No dia seguinte, no escritório, esperam-me problemas por resolver e decisões que valem dinheiro. Não posso sofrer. Claro que por vezes me sinto triste como toda a gente. Mas é uma tristeza doce, como um descanso. E como não espero nada, não faço nada. De uma maneira ou de outra também acabarei por adormecer esta noite.»
Pedro Paixão