O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

8.4.09

Fátima, Batalha e Nazaré, com regresso a Lisboa. Transporto dois casais simpáticos de Formentera, na Ibiza «pequeña». Aguardo, enquanto eles cumprem a visita ao santuário de Fátima. Tomo um cafezinho, compro o jornal. Uma grande feira! Uma loja dos trezentos em ponto grande... O «speaker» pronuncia a palavra «inferno» mais de uma dezena de vezes; um cego berra à passagem das pessoas; lá em baixo, centenas de peregrinos acotovelavam-se para ver de perto a campa de Lúcia (deduzo); os lojistas querem impingir-me bugigangas...
Chegam os clientes espanhóis. Foram rápidos na visita, mais com o intuito de conhecer que propriamente em missão de fé (confessaram-me).
Desabafo para Agustín:
– A fé move montanhas...
Resposta pronta do espanhol:
– De dinero...

6.4.09

Leio sempre com agrado, no semanário «SOL», os artigos de António Pedro Vasconcelos. O último, que reproduzo a seguir (com a devida vénia), fala-nos de Lisboa e tocou-me particularmente. Também eu, que vivo aqui desde os 15 anos, não conhecia bem a minha cidade. Só agora, nesta vidinha de fogareiro, tive oportunidade de lhe descobrir a alma. Sem esconder alguma revolta, devo confessar, face à degradação da zona histórica. Ainda assim, Lisboa é bela e não me canso de andar por aí a elogiá-la e a mostrá-la aos turistas.

Para mim, há duas maneiras de conhecer uma cidade: viajando com tempo e curiosidade (chamem-lhe turismo, se quiserem) ou andando à procura de locais para filmar. Viver numa cidade é a pior maneira de a conhecer ou, pelo menos, de lhe admirar os encantos. Os habitantes de Londres, Paris ou Florença estão seguramente impregnados do que a capital do Reino Unido, de França ou da Toscana têm de mais belo: no horizonte do olhar, como no fundo da memória, pairam inevitavelmente as cores, a luz, a medida humana, as sugestões de momentos únicos, mas o hábito sobrepõe-se à virgindade do olhar, o peso do quotidiano abafa a surpresa e o deslumbramento.

Vivo em Lisboa desde os meus catorze anos e, em mais de meio século de convívio com a cidade, descobri há dias que a conhecia mal. Há muito tempo que tenho um desejo adiado: tirar uma semana de férias, instalar-me num hotel no Chiado e visitar Lisboa como um turista, de mapa e roteiro na mão, para ver com olhos de ver sítios onde nunca fui com ócio ou que nunca desbravei por falta de tempo ou de motivo. Agora que estou a começar um filme, cuja acção se passa em Lisboa, e que exige a descoberta de um prédio burguês de uns seis andares, de preferência do século XIX, com um jardim ou uma praça em frente, que tenha uma vista deslumbrante para os telhados da velha cidade e o Tejo em fundo, fui obrigado a calcorrear todos os recantos dos velhos bairros populares da capital.

Tive a sorte de apanhar uns dias acolhedores de Primavera, sem vento e com um sol ameno espreitando num céu azul onde boiavam farrapos de nuvens soltas; descobri o pulsar da vida popular que julgava extinta, a beleza simples dos prédios moldados em ruas inclinadas ao capricho da natureza, as ruas estreitas que garantem a sombra, as escadas de corrimão que rivalizam com as de Montmartre, as varandas floridas, o pequeno comércio ancestral, colectividades de recreio esquecidas e, sobretudo, as janelas abertas sobre o Tejo, benigno e purificador. Passeei pela Sé, pela Costa do Castelo, mas também por Alcântara, Ajuda, Mouraria e Madragoa, Lapa (mais burguesa, mas onde, a cada esquina, nos deixamos fulminar pelo deslumbramento), Santa Catarina e a Bica, a Baixa e o Chiado, onde a toda a hora nos vêm à memória os versos prosaicos de Cesário ou as cogitações metafísicas de Álvaro de Campos.

Esta descoberta da cidade coincidiu com a leitura do I volume de A Invenção de Lisboa, a obra fabulosa de erudição e encantamento que José Sarmento de Matos decidiu dedicar à sua cidade, que ele ama e conhece como ninguém. Agora que a crise nos bateu à porta, deixo-lhe um conselho amigo: leia A Invenção de Lisboa, e depois, com redobrada curiosidade, experimente tirar umas férias na capital, e descubra todos os dias um pouco desse caldo de culturas que é a cidade, a um tempo árabe, cristã, pombalina e romântica.

António Pedro Vasconcelos