O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

22.12.10

Sugestão: sardinhas em calda de tomate para a ceia de Natal

É brasileiro e está de passagem por Lisboa, hospedado no Hotel Meridien. Transporta vários sacos e durante a curta viagem não se cansa de elogiar Portugal e os portugueses («só precisam de ser um pouquinho mais alegres...»), Lisboa e as suas colinas, a cozinha portuguesa... «A seguir ao Rio de Janeiro, Lisboa é uma das cidades mais belas do Mundo.»
Comprou sardinhas em calda de tomate numa loja da Rua dos Bacalhoeiros, onde uma senhora idosa vende todo o género de conservas e, vejam bem!, «até trabalha com um computador»...
Diz-me que as sardinhas em calda de tomate são muito apreciadas no Brasil e destinam-se à ceia de Natal. Tenciona ir ao Colombo comprar queijos-da-serra, pelos vistos também uma iguaria muito apreciada além-fronteiras.

[«Sardinhas em calda de tomate para a ceia de Natal?!», interrogo-me. E vem-me à ideia um amigo português que vive em Inglaterra e aproveita as frequentes vindas a Lisboa para comprar sardinhas e atum em conserva.]

Queijos-da-serra na ceia de Natal... ainda-vá-que-não-vá... Mas sardinhas em calda de tomate! Seja como for, há muito tempo que não ouvia, no grande observatório que é o meu táxi, alguém dizer bem de Portugal e dos portugueses. Se calhar andamos todos distraídos e não somos assim tão maus como nos pintam; se calhar, Portugal é apenas um «país sucessivamente adiado» (como lhe chamou Alexandre O´Neill) e mantém intactas, bem nas entranhas, as mais nobres virtudes; se calhar...

Boas festas!!!

PS - Por mim, dispenso as sardinhas em calda de tomate. Prefiro uma boa posta de bacalhau. Rezemos para que a famigerada crise não nos destine uma latinha de sardinhas no Natal de 2011...

16.12.10

Quem sai do Lux e quer fazer inversão de marcha, no sentido do Terreiro do Paço, tem de passar por baixo do viaduto de Santa Apolónia. Só há tempos me apercebi de que alguns dos sem-abrigo de Lisboa escolhem aquele poiso para pernoitar. Abrando a marcha para me certificar de que são mesmo seres humanos que estão ali, naquela manhã muito fria.
Um homem de meia-idade, perturbado com os faróis do carro, levanta-se ligeiramente, envolto numa manta, e fita-me com os olhos muito abertos: «Há azar?!» Fico meio aflito e balbucio qualquer coisa do género: «Está tudo bem?»
O homem riposta, quase sem me deixar terminar: «Siga a sua vida!»
E sigo, mas perturbado com aqueles olhos muito abertos que ainda hoje me perseguem e «acusam» de pecados que julgo não ter cometido.
Se eu fosse presidente de câmara, juro que na minha cidade não haveria seres humanos a dormir debaixo das pontes... Mas como não sou e voz de «fogareiro» não chega ao céu, limito-me a este desabafo de indignação.