O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.5.11

Praça do aeroporto – Vem carregada de bagagem, vulgo «bagulho» na gíria taxista. É brasileira, muito sensual, e tem à espera um português-figura-pública. Entra no táxi «faminta» de beijos. Durante o percurso que atravessa a cidade não param de se acariciar. Pelo indiscreto espelho retrovisor vejo que há ali paixão forte. Não interrompo, por nada deste mundo... Ligo o rádio baixinho, para nem sequer me aperceber dos sussurros...
Final da «corrida». Retiro as malas do porta-bagagem. Não quer troco, o meu cliente. Despede-se com um «obrigado» e... uma piscadela de olho.
É bom estar apaixonado. Faz subir a adrenalina e... faz bem ao coração, segundo dizem os entendidos.

24.5.11

O assalto ao «Santa Maria»

Em Janeiro de 1961 deu-se o assalto ao paquete «Santa Maria», incidente que na época notabilizou a contestação ao Governo de Oliveira Salazar e introduziu a prática, depois muito difundida internacionalmente, de sequestrar navios e aviões com fins políticos.
O «Santa Maria» tinha largado de Lisboa a 9 de Janeiro de 1961, em mais uma das suas viagens regulares à América Central, fazendo escala, no dia 20, no porto venezuelano de La Guaira.
Entre os passageiros embarcados neste porto, contava-se um grupo de 20 membros da DRIL – Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, organismo constituído por opositores aos regimes de Franco e Salazar, cujo comandante era o capitão Henrique Galvão, que embarcou clandestinamente no «Santa Maria» um dia depois, em Curaçau, com mais três elementos da DRIL.
Galvão estava exilado na Venezuela desde Novembro de 1959, e em Julho de 1961 tinha concluído os planos de assalto ao «Santa Maria». Foi escolhido este paquete por ser muito superior aos diversos navios de passageiros espanhóis que na altura faziam a carreira da América Central.
O capitão Galvão pretendia deslocar-se no «Santa Maria» até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, cuja tomada permitiria em seguida efectuar um ataque a Luanda e iniciar, a partir de Angola, o derrube dos Governos de Lisboa e Madrid.
Horas depois da largada de Curaçau, o «Santa Maria» navegava rumo a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão da Marinha Mercante Mário Simões da Maia, quando, precisamente à um hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de 1961, os 24 homens de Henrique Galvão tomaram conta da ponte de comando e da cabina de TSF, dominando os oficiais do navio. O terceiro piloto, João José Nascimento Costa, ofereceu resistência aos assaltantes e foi morto a tiro.
Pouco depois, o «Santa Maria» alterou o rumo para leste, procurando alcançar rapidamente o Atlântico. A 23 de Janeiro, o navio aproximou-se da ilha de Santa Lúcia e desembarcou, numa das lanchas a motor, dois feridos graves com cinco tripulantes, comprometendo a possibilidade de atingir a costa de Africa sem ser detectado.
No dia 25, o paquete cruzou-se com um cargueiro dinamarquês, traindo a sua posição, o que permitiu a um avião norte-americano localizar o «Santa Maria» horas depois.
Finalmente, a 2 de Fevereiro, o «Santa Maria» fundeou no porto brasileiro do Recife, procedendo ao desembarque de passageiros e tripulantes. Chegou a ser considerado o afundamento do paquete, mas no dia seguinte os rebeldes entregaram-se às autoridades brasileiras, obtendo asilo político, ao mesmo tempo que o «Santa Maria» voltava à posse da Companhia Colonial de Navegação.
Os passageiros do paquete assaltado foram transferidos para o «Vera Cruz», que saiu do Recife a 5 de Fevereiro, chegando a Lisboa a 14 do mesmo mês, após escalar Tenerife, Funchal e Vigo. Por sua vez, o «Santa Maria» largou do Recife a 7 de Fevereiro, entrando no Tejo a 16 e atracando em Alcântara.
Independentemente dos aspectos políticos que na altura rodearam o caso «Santa Maria», este incidente acabou por fazer do navio o mais famoso dos paquetes portugueses. Embora o «Infante Dom Henrique» e o «Príncipe Perfeito» fossem mais recentes, o «Santa Maria» era um navio de prestígio por excelência, situação a que não era estranho o facto de ser o único navio de passageiros português a manter uma ligação regular entre Portugal e os Estados Unidos da América.
Coincidindo com o desvio do «Santa Maria», deflagraram a 4 de Fevereiro, em Luanda, incidentes graves, seguidos, em Março, do começo da guerra no Norte de Angola. O Governo de Lisboa decidiu enfrentar a situação, enviando a partir de Abril, «rapidamente e em força», importantes reforços militares. Esta decisão implicou, de imediato, a requisição de diversos paquetes e navios de carga pelo Ministério do Exército para efectuar o transporte de tropas e material de guerra. A utilização esporádica, para este fim, de navios de passageiros portugueses vinha já do século XIX, passando a partir de 1961 a constituir uma das principais ocupações permanentes dos paquetes portugueses.

in «Paquetes Portugueses», de Luís Miguel Correia

23.5.11

Nasceu na Madeira e integrou o grupo revolucionário que em 1961 assaltou o paquete português «Santa Maria», sob o comando do capitão Henrique Galvão, em pleno salazarismo. Apesar de amnistiado depois do 25 Abril, só ao fim de 40 anos regressou a Portugal. Viveu sempre em Cuba, mas percorreu todas as Américas como alto funcionário do Banco Mundial.
Já não me lembro de como começou a conversa – sei que derivou para temas e personagens muito variados. Fidel de Castro, Hugo Chávez, Mário Soares, Alberto João Jardim... Portugal, Cuba, EUA, Venezuela...
Artur Macedo, reformado, não pensa fixar-se em Portugal, nem sequer na sua Madeira natal. Não esconde um certo desencanto pelos caminhos «desumanos» que a Europa está a trilhar. E dá um exemplo: «Em Cuba, os velhos são tratados com carinho; aqui não...»
A viagem foi curta. Parei o carro, na Praça da Figueira, e ali ficámos à conversa uma boa meia hora. Com total disponibilidade, o meu ilustre cliente não deixou sem resposta algumas das minhas dúvidas. Cuba vai sobreviver sem Fidel? E como explicar o fenómeno Hugo Chávez, na Venezuela?
Na opinião de Artur Macedo, Raul Castro já há muito tempo que mexe os «cordelinhos» e está a implementar uma economia mista em Cuba, de forma a melhor corresponder aos anseios de uma geração que não viveu o período revolucionário. Quanto a Hugo Chávez, considerou-o um «grande estadista», capaz de bater o pé aos EUA, cada vez mais dependentes do petróleo venezuelano.
Enquanto jovem, Artur Macedo foi aluno de Mário Soares, no Colégio Moderno. Não perdoa ao ex-Presidente da República o facto de ter condecorado Frank Carlucci, o ex-embaixador norte-americano em Portugal (nos tempos «quentes» do pós-25 de Abril) e que também esteve envolvido no golpe militar do Chile, que levou à morte de Salvador Allende.
Uma viagem muito agradável. Depois da rendição, e com o auxílio da Internet, fui consultar alguns textos sobre o assalto ao Santa Maria – um marco na história da luta contra o salazarismo. Artur Macedo era jovem e esteve lá...

14.5.11

Quando o Tejo era a piscina de Alfama

Dos becos com sardinheiras aos condomínios fechados; Cascalheira de «má fama» e o «rei do KO»… Lisboa, a minha cidade preferida, apesar de tudo; estórias que permanecem no imaginário de muitos «alfacinhas»; colectividades que resistem; a redescoberta da cidade das colinas, dos bairros e das pessoas que os habitam. Da Graça a Alfama, um salto ao Castelo, o «mergulho» no Bairro Alto e o jogo da «sueca» no Cascalheira de «má fama», tão perto e tão longe das Amoreiras e do Casal Ventoso. Esta reportagem já tem uns aninhos, mas fala de Lisboa e creio que mantém actualidade.

Há menos de um século, o Tejo fazia parte do quotidiano de muitos lisboetas. Depois, o Estado Novo privou-os do rio e encheu as suas margens de armazéns. Nos últimos tempos, devolveu-se o Tejo à cidade. A Expo-98 deu enorme impulso a essa ideia e a zona ribeirinha ficou diferente. Os bares e restaurantes dominam agora a paisagem, há espaços abertos ao rio. Os golfinhos dificilmente voltarão, mas deu-se a reconciliação da cidade com o Tejo.
As «vilas» e os becos com sardinheiras, na Graça, no Castelo e em Alfama. O Adicense, na Rua Norberto Araújo, é um clube com história. Na sala estão poucas pessoas, umas conversam, outras jogam à «sueca». Dialogamos com o sr. Fernando. Tem 76 anos e passa muitas horas na colectividade com os poucos amigos que lhe restam de uma vida inteira em Alfama. «Vou morrer aqui. Não conseguiria viver noutro lado. Mas o bairro já pouco tem a ver com os tempos em que isto era uma família e as portas de casa ficavam abertas. Muitos saíram e foram morar para os arredores de Lisboa, outros zarparam para a província. São poucos os sobreviventes!»
Vêem-se taças nas vitrinas, emblemas e galhardetes. E uma foto antiga a preto e branco – uma multidão junto à doca do Jardim do Tabaco, observando os nadadores, de calções compridos colados às pernas, que mergulham no rio. «O tempo em que o Tejo era a piscina de Alfama… Depois, o Salazar até o rio nos tirou… Mas temos bares e droga com fartura! Alguma malta nova anda por aí à deriva, bebe muito e droga-se e tem de arranjar dinheiro de qualquer maneira. Não sou contra o 25 de Abril. Longe disso! Estive no Aljube e ainda tenho marcas do que me fizeram. Mas talvez estejamos a precisar de outro 25 de Abril…»
Talvez!, amigo Fernando.

«Tasca do Chico» e «fado vadio»

Alberto é «alfacinha de gema». Nasceu no Bairro Alto, onde teve uma mercearia, hoje minimercado. Conhece o bairro como ninguém e fala de fadistas e prostitutas, de jornalistas e escritores, do cheiro característico dos jornais acabados de sair das rotativas, dos miúdos que desciam as Escadinhas do Duque em passo acelerado a apregoar os vespertinos [«Lisboa ó Popular!»], das varinas e dos seus pregões [«quem quer figos quem quer almoçar!»; «olha a petinguinha fresca!»]. A nostalgia de um Bairro Alto que apenas existe na memória de alguns. «Hoje em dia mal se pode viver aqui. O barulho, a confusão de tantos bares e restaurantes, a falta de estacionamento, tudo isto modificou o bairro. Sempre houve muita agitação, é verdade, mas nada que se compare aos tempos actuais.»
É noite! Bandos de rapazes e raparigas invadem o Bairro Alto. Vêm em grupo e poisam em bares pré-seleccionados. «Punks», «góticos», «metálicos», «raves»… Cruzam-se neste espaço lisboeta, a par de turistas que chegam em excursões para ouvir o fado e de gente que trabalha no único jornal que ainda lá existe: «A BOLA». Às tantas misturam-se, por vezes há zaragatas, mas todos fazem do «bairro» uma espécie de santuário.
«Antigamente, a vida dos moradores girava à volta do Lisboa Clube Rio de Janeiro, onde dançávamos e nos divertíamos. Foi lá que comecei a namoricar a minha mulher. Hoje, o clube limita-se a organizar a marcha do Bairro Alto e pouco mais. Muitos saíram e o bairro perdeu a alma.»
Os turistas abandonam as casas de fado e dirigem-se, agora, para o Largo da Misericórdia, rumo aos autocarros. Porém, a «Tasca do Chico» permanece cheia de adeptos do... «fado vadio». Silêncio! O «doutor» vai cantar um fado de Coimbra! Nota-se-lhe um brilhozinho nos olhos quando a guitarra começa a «gemer»… «Aqui ainda se ouve fado a sério. E todos podem cantar! O outro fado que há por aí é só para turistas…»
«Agora até deitaram um quarteirão abaixo para erguer um condomínio fechado.» Alberto não perdoa a quem está a «destruir» o «seu» bairro…

Cascalheira de «má fama»

Quem não ouviu falar do Cascalheira? «Não jogas nada! Vai mas é prò Cascalheira!», escuta-se ainda hoje nos estádios de futebol. Este clube de «má fama» perdura no imaginário de muitos lisboetas… Fica em Campolide, paredes-meias com a cosmopolita Amoreiras, mas escondido na Rua do Garcia, perto do Alto Carvalhão. Não se dá por ele quando se viaja de carro para Monsanto.
Fundado em 1934, o Cascalheira é hoje um pequeno clube de bairro, com uma sede e um minipavilhão doado pela Junta de Freguesia de Campolide, em 1997, onde se joga pingue-pongue e «sueca».
O presidente, Vasco Bilreiro, explica-nos a origem da «má fama» de que o clube goza e fez dele um dos mais badalados da capital (e não só…), apesar de não ter conquistado mais que um título, em futebol, no ano de 1954, quando foi campeão da II Divisão da AF Lisboa. «O Cascalheira era um clube rude, desordeiro. Havia sempre zaragata a seguir aos jogos… Era formado por pessoas analfabetas que vinham da província trabalhar em Lisboa. Instalavam-se aqui, nas vilas e nos campos, completamente desenraizadas. Nesse tempo, ninguém brincava connosco! O clube tinha uma claque enorme de rapazes e raparigas que assistia a todos os jogos. Havia um ‘bufet’, bebia-se muito! Não havia droga, o vinho era a droga!»
Em 1956, o Cascalheira foi desalojado do campo da Aliança. A partir de então, o clube quase morreu. Foi-lhe prometido um espaço em Monsanto, até hoje… Nesse local foi construído um bairro para os guardas prisionais.

O «rei do KO» e os Jogos Olímpicos

O Cascalheira não teve só futebol. Ciclismo e boxe também eram modalidades praticadas no clube, afinal «desportos rudes para gente rude», como diz Vasco Bilreiro, também ele um antigo «boxeur» e com muitas estórias para contar. Era conhecido por «rei do KO» e impôs respeito nos ringues de Lisboa, entre os quais pontuava o do Parque Mayer, nos anos 40/50. «Tínhamos aqui uma verbena e um dia eu ia lutar com Silva Freire, que pesava mais sete quilos. Quando ele surgiu, eu já tinha jantado e não quis combater, mas começaram a dizer que eu estava com medo e fui mesmo. Ganhei-lhe por KO e parti os dentes ao árbitro, com um soco, quando este meteu a cabeça para tentar separar-nos.»
A vida de Vasco Bilreiro confunde-se com a história da colectividade. «Casei no dia 1 de Abril de 1951, às 11 horas. Jantámos com os padrinhos, vim pôr a mulher a casa e fui combater no Parque Mayer. Ganhei por KO ao primeiro assalto! Naquela altura, eu estava desempregado e os 200 escudos do combate davam um jeitão… Davam para comer durante duas semanas…»
O presidente do Cascalheira lamenta, ainda hoje, não ter ido às Olimpíadas de 1952: «Cheguei a ser seleccionado, juntamente com o Belarmino Fragoso, mas não havia verbas e ficámos por cá. Podíamos ter conquistado uma medalha para Portugal!»

«Colectivismo está a morrer»

«Antigamente, a Cascalheira ia até Alcântara. Agora somos vizinhos das Amoreiras e do Casal Ventoso… Muita gente saiu, restam os velhos e pouco mais. Qualquer dia, nascem aqui umas torres, viradas para Monsanto…»
Os clubes de bairro estão a ficar sem vida, a desaparecer. Muitos sobrevivem graças à carolice de poucas pessoas. Adicense, Rio de Janeiro, Cascalheira, Ginásio do Alto Pina, Clube Atlético de Campolide… Vasco Bilreiro tem uma justificação: «O colectivismo está a morrer. Já ninguém quer sacrificar-se pelos outros. É o mundo do dinheiro a dominar… O Cascalheira esteve quase a fechar as portas, íamos entregar as chaves à Junta de Freguesia, mas como gosto do clube… Tenho um barquinho de pesca que é a menina dos meus olhos, onde passo os melhores momentos da minha vida, e estou aqui… Isto agora funciona mais como um café de bairro. Conversamos, organizamos excursões para os velhotes…»
Tempo ainda, antes de terminar esta viagem por alguns bairros de Lisboa, para tomar um cafezinho, jogar a «sueca» e ouvir mais umas tantas estórias de pessoas avessas a modernismos [«nunca fui às Amoreiras»] e que permanecem como árvores nos (seus) bairros. As vilas, os becos, os largos, as ruas estreitas… são o seu mundo.

13.5.11

Praça do aeroporto – A primeira coisa que fazem, mal saem do avião, é ligar o telemóvel. Altivas, atravessam a praça de táxis e dirigem-se ao parque de estacionamento, olham em frente e evitam os taxistas. Lá terão as suas razões... São mulheres bonitas, algumas hospedeiras de bordo.
Há dias, uma delas entrou no meu táxi e logo surgiram as piadinhas: «Saiu-te o euromilhões...» Não ligo, respiro fundo e preparo-me para a corrida.
– É para Telheiras, sff.
Lá fomos... Vinha cansada, a hospedeira de bordo. A viagem aérea tinha sido longa, confessou-me que estava desejosa de chegar a casa, tomar um duche morno e descansar. Imaginei-a no banho, com o corpinho envolto em espuma... Pensei: «Estás com miragens!»
Levei a mala à porta e despedi-me daquela mulher linda de morrer:
– Bom descanso!
– Obrigado!