O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

19.11.05

A primeira corrida

Apresento-me na Rua de Santo Amaro, ali para os lados da Estrela, disposto a «mergulhar» na noite de Lisboa, ao volante de um Mercedes e indiferente aos perigos que me sopraram aos ouvidos. A vida está pela hora da morte, preciso de fazer dinheiro rápido e esta é uma actividade onde se entra e sai com a maior das facilidades. «Trinta e cinco por cento, das cinco da tarde às seis da manhã.»
[Vem-me à memória «A Fanga», de Alves Redol. Nesse tempo, no Ribatejo ganhava-se à jorna, quando havia trabalho; nos táxis, ganha-se à percentagem. Qual a diferença?]
Aceito a proposta. O «190» está à minha espera para uma aventura na cidade. O «colega» de dia avisa-me, disfarçadamente: «Cuidado, porque a terceira não funciona!» Ainda assim, estou determinado. Subo a Rua de São Bento, na direcção do Largo do Rato. Antes de apanhar cliente, decido experimentar a máquina. A terceira entra, mas salta imediatamente. É preciso segurá-la...
Alameda D. Afonso Henriques. Uma senhora: «Leve-me à Estrada de Benfica, em frente à igreja, sff.» As pernas tremeram. «Qual o percurso preferido?», pergunto, na esperança de ouvir esta resposta: «Vá por aqui, vire acolá, siga em frente...» Mas não: «Vá por onde for mais rápido...»
E lá fui, sempre a segurar a alavanca das mudanças, por causa daquela maldita «terceira». Às tantas, na Avenida de Berna, esqueci-me e a «terceira» saltou. O estrondo foi enorme, a cliente assustou-se... «Desculpe, mas estou a estrear-me nisto...»
Igreja de Benfica. A corrida rendeu cinco euros e tal. Que alívio! E agora? Faço inversão de marcha, paro junto ao Jardim Zoológico e tomo uma decisão: «Não trabalho mais nestas condições.» Telefono, ninguém atende. Dirijo-me à garagem, na Rua de Santo Amaro à Estrela. Estava fechada! Estaciono o carro e vou para casa.
No dia seguinte, às seis da manhã (hora da rendição), lá fui à 24 de Julho. O patrão parecia uma barata tonta, de um lado para o outro, a discutir com todos. Pensei no que me esperava e... preparei-me. «Se falas assim comigo, viro-te as costas...»
«A folha?» Tinha a resposta estudada e disparei: «Não vale a pena discutir. Fiz apenas uma corrida e estacionei o carro junto à garagem. Não está em condições...» O patrão nem me deixou terminar... «Só me faltava esta... Saia da minha vista! Desapareça!»
«Não desapareço! Está muito enganado! Vai ter de me ouvir e não lhe admito que fale assim comigo!» Ficou mudo e zarpou, a vociferar. Dei meia-volta e fui para casa.
Como é possível um homem destes ter tantos táxis a circular na cidade de Lisboa? Sem condições de segurança, nem de higiene, nem respeito pelos outros.