O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

2.2.06

«Sou taxista e dirijo a minha vida»

Ainda são poucas as mulheres taxistas de Lisboa. Mulheres valentes que venceram tabus e enfrentaram uma profissão difícil. No Brasil é mais frequente ver mulheres taxistas. Como é o caso de Sónia Ferreira, de 50 anos, que guia um táxi nas ruas de São Paulo. Tudo começou há 18 anos, quando ela ficou viúva e com duas filhas pequenas. A solução foi assumir o táxi que era do marido, levando a caçula, de quatro meses, no banco de trás. Nas ruas, Sónia enfrentou preconceitos e deu um rumo à sua vida. Hoje, ela é uma das 2.300 taxistas do sexo feminino, entre os 65 mil motoristas que rodam em São Paulo. Aqui registamos, com a devida vénia, o seu depoimento:

Comecei a bancar a taxista aos 30 anos, quando meu marido, Dornélio, motorista de táxi, descobriu que sofria de hipertensão. Às vezes ele ficava internado e eu substiuía-o num ponto de Anhangabaú, em São Paulo. Eu levava os clientes fixos e no trajeto para casa fazia uma corridinha por fora, mas nem pensava em trabalhar no táxi. No dia 29 de Dezembro de 1986, Dornélio foi internado à pressa. Quando cheguei ao hospital, ele tinha morrido. Paragem cardíaca, aos 39 anos. De repente vi-me viúva, aos 33 anos, com duas filhas pequenas: a Janaína, de sete anos, e a Lígia, de quatro meses. E sem trabalho, porque tinha deixado de ser secretária quando nasceu a caçula. Fiquei perdidinha... Uma amiga cuidou do velório e eu fui passar uns dias na casa da minha mãe. Quando voltei, vi os restos do panetone do Natal na cozinha, a casa vazia, uma solidão danada. E dinheiro... nenhum! Porque taxista só tem o que ganha no dia.
Aí, foi conselho de todo lado. Uns diziam para eu vender o carro e a licença de taxista, outros falavam que era melhor vender a licença e ficar com o carro – um Passat novinho, que Dornélio nem tinha acabado de pagar. Eu não sabia o que fazer, mas no dia da missa de sétimo dia tirei o carro da garagem e fui para a igreja com as meninas. Lá, me deu um estalo: «Gente, eu tenho é que trabalhar!» Quando pedi para a vizinha me ajudar com as meninas, minha família achou que eu estava maluca, mas fui em frente.
No começo, chorei muito por causa de passageiro. Eu perguntava o caminho e era xingada. Alguns diziam que o problema era meu e que, se desse voltas, seria pior, porque eles pagariam o valor normal. Eu ia na maior tensão, com medo de não ser paga, medo do cliente me estuprar, me roubar. A Lígia ainda mamava no peito, muitas vezes eu chegava a casa e ela estava aos prantos. O jeito foi colocá-la num cestinho, no banco de trás, e levá-la junto. A gente saía às seis horas e voltava no fim da tarde. À noite, ela ficava com a vizinha. Os passageiros estranhavam quando me viam – muitos estranham até hoje – e achavam graça ao ver o bebé, mas ninguém se incomodava. Eu parava para amamentar, trocar fraldas e dar frutinhas. No bairro do Carmo tem muito pé de ameixa amarela e ela adorava. Ela foi comigo no táxi até os quatro anos, na cadeirinha. E gostava tanto que hoje, aos 18, pensa em seguir a profissão. E eu faço o maior gosto.

«Um rapaz bem vestido puxou uma faca, me fez passar para o banco do carona e disse que estávamos num cemitério de taxistas. Pensei: 'Morri!' O desespero foi tanto que abri a porta e pulei»

Sorte que ela não estava comigo quando passei por uma situação difícil, logo que assumi o táxi. Eram seis da tarde, peguei um rapaz bem vestido, que ia para São Miguel Paulista [zona leste de São Paulo]. Ele foi conversando e, quando vi, estava num lugar deserto. Ele puxou uma faca, me fez passar para o banco do carona e me mandou calar a boca, dizendo que estávamos num cemitério de taxistas. Pensei: ‘Morri!’ Apavorada, falei que estava com os peitos cheios de leite, que minha filha me esperava, mas ele disse que não tinha feito filho em mim, que não era problema dele. Meu desespero foi tanto que abri a porta e pulei. Acordei toda esfolada, com um monte de gente em volta. Fui direto para a delegacia. Na mesma noite acharam meu carro, no dia seguinte eu já estava trabalhando.
Quatro anos depois da morte do Dornélio, eu me casei com o Maguila, que também era taxista e tinha um ponto na Ipiranga com a São João. Foi bom, mas só durou cinco anos, porque ele tomou um tiro defendendo um amigo no trânsito e morreu. Resolvi que não me casaria mais. Tenho um namorado, outro taxista, há nove anos. Tem que ser taxista... Senão, sente ciúmes. Já levei muita cantada de motoristas, porque o homem admira a mulher que compete com ele sem perder a feminilidade. Eu adoro uma saia! Não dá para dirigir de salto, mas uso sandálias de plataforma. Já o passageiro não canta, fica é curioso, querendo saber da minha vida. Eu conto, gosto de conversar.
Eu amo o táxi, porque encontro todo o tipo de gente, de situação. Quando meu marido morreu, entendi como as pessoas são. No começo, os colegas dele me receberam bem, depois vi que queriam me desestimular para ficar com a nossa clientela fixa. Preferi sair de lá e fiquei quatro anos rodando na rua, até arranjar outro ponto, no Parque D. Pedro. Tenho amigos motoristas, mas ainda ouço ironias como: 'O feijão tá queimando!' ou 'Vá lavar roupa!'.
Só conheço cinco colegas mulheres. No trânsito, os passageiros me perguntam se saí escondida do marido, e ainda tem as mulheres que fazem 'não' com o dedinho quando eu páro. E não entram! Conseguem ser mais machistas que os homens. Eu levo na desportiva, a mulher tem de conquistar o seu lugar com diplomacia.
O estresse fica por conta do trânsito, mas o pior é a falta de banheiro. Já tive que pedir para usar banheiro de residência. O medo do perigo, depois de 18 anos, ficou para trás. Já bati feio, fui assaltada quatro vezes, entrei em favela, conheci bandido que morreu e trombadinha que virou bandidão. Já vi gente morrer no trânsito. Um amigão meu, o Almeida, foi assassinado depois de me perguntar, pelo rádio, quanto ficava uma corrida de Cumbica a Campinas. Encontraram o corpo dele atrás do aeroporto. Até hoje fico triste quando penso no Almeida.
Mas o que mais me choca é ver meninas novas indo para motel com homens maduros. Lembro das minhas filhas e penso: 'Será que a mãe sabe disso?' Também tenho pena das prostitutas. Elas fazem sinal, pensando que sou homem e, quando páro, muitas estão com a roupa aberta, pedem desculpas. Às vezes até dou carona. Na rua, um dia você ajuda alguém e no outro esse alguém te ajuda. Meu carro quebrou perto de uma favela, dois caras me cercando, e quem me tirou da fria foi um menino, que eu sei que é batedor de carteira, para quem dei dinheiro na feira depois de me ajudar a carregar as compras. Nesses momentos, você acha que chegou a sua hora. Mas tem de encarar. Não escolho passageiro, embora tenha medo de alguns.
Mas o táxi não é só horror, também dou boas risadas. Uma vez entraram duas mulheres e, pelo retrovisor, não vi nenhuma, porque elas estavam se agarrando no banco. Outra já entrou avisando que ia-se trocar, porque tinha que chegar em casa com a roupa que tinha saído. Os bêbados também são engraçados. Teve um que me fez parar em cada padaria do trajeto pra tomar uma pinga e achou que a corrida estava paga, porque me comprou cigarro e coca-cola. Esse eu tive que pôr para fora e tirar o dinheiro do bolso da camisa dele. Nas ruas, conheci as melhores e as piores pessoas. E vi que a madame, o bandido, cada um é um mundo, entende? A madame dá a batidinha no vidro, cheia de anéis, olha o carro com nojo e dá uma espanada no banco. Mas o pior é o executivo, que vive com pressa e acha que, porque está pagando, sou empregada dele. O dinheiro faz isso com as pessoas.

«Hoje, coordeno o meu ponto, almoço com políticos, milito no sindicato. Espero não me aposentar porque, quanto mais vivo e ando nas ruas, mais sinto o quanto a vida é linda»

Durante muitos anos, trabalhei 12 horas por dia. Hoje, trabalho 18, porque a situação está pior. Criei minhas filhas sozinha, ainda moro de aluguer. Por um ano e meio paguei R$ 1.700 por mês numa Sprinter 98, o meu carro atual. Trabalho sete dias por semana e nunca tirei férias. Às vezes passo uns três dias na casa de uma amiga, em Santos. Tenho parentes em Fortaleza, onde nasci, mas só voltei lá uma vez. Vivo num pique danado e, quando chego em casa, é para dormir, não consigo mais ficar parada vendo novela. Minhas filhas é que cuidam da casa.
Mesmo trabalhando tanto, entrei na faculdade de letras, em 1997, mas a crise financeira me obrigou a abandonar. Não que fosse virar professora, estudava para me aprimorar. Também fiz seis anos de kung-fu. Sou faixa marrom, luto com espada, bastão e faca. Parei por falta de tempo. Mas o que mais lamento é não ter acompanhado de perto a educação das meninas. Elas foram mais cuidadas por vizinhos e parentes que por mim. Nossa relação é distante. E eu sofro! Como eu vivia fora, elas não me apresentavam os namorados, eu não soube do dia em que menstruaram pela primeira vez. Só fiz pagar, pagar, pagar... Talvez, lá no fundo, elas se orgulhem de mim. Mas eu me culpo um pouco, queria outra vida para elas. O resultado da minha ausência é que as duas são mães solteiras: a Janaína tem o Dornélio, de oito anos, e a Stephanie, de cinco. A Lígia é mãe do Douglas, também de cinco. A mais velha é operadora de marketing, a caçula estuda turismo e computação, que eu pago. E minha gana de trabalhar, hoje, é pelos meus netinhos, que adoro.
Nos meus momentos com Deus, na igreja, sinto que meu espírito vai ter muita paz quando eu me for. Elevo meu pensamento e rezo, não para pedir, mas me concentro nas coisas bonitas que me acontecem. A religiosidade me dá força. Eu tenho entusiasmo para correr atrás, me defender, criar a família, aguentar o tranco. Hoje sou coordenadora do meu ponto, no Parque D. Pedro, que tem 13 carros. Sou a única mulher e todos os problemas vêm a mim. Almoço com políticos, milito no sindicato. A minha vida todo mundo no sindicato conhece e respeita. Tomara que Deus me conceda a graça de não ter que me aposentar. Espero morrer no táxi, porque quanto mais eu vivo e vejo a vida nas ruas, mais eu sinto o quanto a vida é linda.