O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

2.6.06

Lisboa que amanhece

Desculpem qualquer coisinha, mas hoje nada aconteceu que justifique um «post». Nada? Pela primeira vez, fiz um funeral. Da igreja da Luz ao cemitério do Alto de São João, aquela hora (de ponta) pareceu-me uma eternidade. Fico sem palavras, não sei o que dizer às pessoas nos momentos difíceis. Terminada a «corrida», ouvi Sérgio Godinho. Sabe bem conduzir ao som da sua música, cantarolar os seus poemas. E fumar um cigarrinho!

Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo

A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram

Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece

O Tejo que reflecte o dia à solta
a noite é prisioneira dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem

E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes

Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras

E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura

Na Lisboa que amanhece