O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.10.06

A última aguardente do Tio Nascimento

É sempre com prazer que leio José do Carmo Francisco, velho amigo e poeta que também dedica parte do tempo às lides da bola. Somos de clubes diferentes (ele do Sporting, eu do Benfica), mas isso que importa quando a amizade «é um posto». A crónica que se segue foi-me oferecida pelo autor. Tem, para mim, a particularidade de falar de uma região que conheço bem, ilustrada com uma foto da bela praia fluvial da Fróia, onde costumo poisar quando piso solo beirão.

Bebo devagar um cálice de aguardente branca e muito leve, puríssima e macia, tal como saiu do alambique no passado mês de Setembro. É uma aguardente que não pesa no estômago e que torna as digestões mais suaves. Mas não a posso gastar muito depressa porque esta aguardente é uma memória viva do meu Tio Nascimento e da sua Atalaia do Ruivo, paisagem perfeita entre sol e pó, entre pedras e pinheiros, entre água e vento. Lugar mágico onde a terra quase se junta ao céu numa espécie de oração sem palavras.
Dois dias antes de morrer com o coração cansado e incapaz de trabalhar mais, este homem que foi em novo ceifar todas as searas do Alentejo e das regiões espanholas fronteiriças estava possuído de um vigor inesperado e obrigou os filhos e as noras a trabalhar ainda mais para entregar o bagaço e o folhelho da uva a um certo alambique para os lados da serra das Corgas. Depois foi fazer uma festa ao burro e enxotar as galinhas antes de olhar as cabras. Entretanto, morreu na grande cidade, um dia antes de fazer a intervenção cirúrgica que lhe poderia ter prolongado a vida, caso corresse bem. Mas não correu.
Hoje este gesto de beber um cálice de aguardente tem para mim o valor de um regresso. Esta bebida guardou a paisagem povoada pelo Tio Nascimento, entre o seu lugar de sempre, a sua casa dos ventos onde se vê ao longe um bocado de Espanha e mais perto a terra das cerejeiras em flor. Essa paisagem povoada onde o corpo do Tio Nascimento descansa no cemitério da Sobreira Formosa, mas onde o espírito circula no sabor macio e puro, leve e branco desta aguardente que não pesa no estômago. Porque incorpora a memória destilada de um homem cheio de humanidade.
José do Carmo Francisco