O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

21.11.06

Trava-língua

Duda Guennes é autor da crónica semanal «Meu Brasil Brasileiro», a mais antiga da imprensa portuguesa, em «A Bola». Uma selecção dessas crónicas está publicada em livro, com o mesmo nome. «Bom de papo, Duda sabe infindáveis histórias, incluindo muitas pequenas e deliciosas histórias (...), engraçadas, invulgares, interessantes. Bem achadas e bem contadas. Confesso devoto de Nélson Rodrigues e Armando Nogueira, Duda tem uma forma peculiar de lhes pegar, uma escrita leve, solta, desenvolta. Em suma: é um magnífico cronista», escreve José Carlos de Vasconcelos, no prefácio. Não resisto a transcrever (com a devida vénia...) uma crónica do amigo Duda.

«A aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha; nem a aranha arranha a jarra nem a jarra arranha a aranha.»

«O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem.»

Trava-língua (enrola língua ou parlenda) é um pequeno texto, rimado ou não, de pronunciação difícil, que pode provocar hiatos, paráquemas ou cacófatos. Pois o velho trava-língua está a deixar de ser apenas brincadeira de crianças, exercício de dicção teatral ou lição contra a gagueira para ser matéria adoptada em várias estâncias no capítulo da auto-estima. Pessoas que querem perder o medo de se expor, de errar, que têm acanhamento, timidez e vergonha de comunicar estão aprendendo a se soltar com a utilização de trava-línguas. É fundamental para o desbloqueio da expressão, para ajudar os interessados em soltar a língua e aprender a falar bem nas relações pessoais e nas profissionais.
Saindo do universo infantil, o trava-língua passou a ser usado no teatro e na expressão corporal, e logo se percebeu que era uma arma utilíssima para contornar dificuldades em se expressar. Porque, quando a pessoa se solta, a linguagem começa a fluir naturalmente. Hoje, a velha brincadeira infantil merece ser estudada no campo da linguística e da semiologia e já é encarada como uma nova cadeira: a linguistoterapia.
Tudo indica que Amadeu Amaral e Alcides Bezerra foram os autores do termo trava-língua. É também conhecido como parlenda. Serve como obstáculo ou problema para desenferrujar a língua, porque quando dita pelas pessoas com rapidez enrola a língua de quem a está pronunciando.
Muitos trava-línguas, quando pronunciados ou cantados de maneira rápida, resultam em cacofonia (sons desagradáveis ou palavras obscenas, resultantes da união das sílabas finais de uma palavra com as iniciais da seguinte). É um recurso muito utilizado por repentistas para derrotar o adversário em pelejas. Podem aparecer também em forma de quadra: ficou famoso o desafio entre os cantadores Zé Pretinho e o Cego Aderaldo. Este último improvisou um trava-língua que deixou o adversário totalmente atordoado, sem poder repetir o mote: «Quem comprar a paca cara/paca cara pagará. / Pagará cara a paca/quem comprar a paca cara...»

Jararaca e Ratinho, famosa dupla do tempo de ouro da rádio, deixaram registada essa parlenda:

«Um sapo dentro do saco
O saco com o sapo dentro
O sapo batendo o papo
E o papo cheio de vento.»


Há outras:

«Num ninho de mafagafos
Seis mafagafinhos há;
Quem os desmafagafizar,
Bom desmafagafizador será.»


E mais:

«Lá vem o velho Félix
Com um fole velho nas costas
Tanto fede o velho Félix
Como o fole do velho Félix fede.»