O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

15.12.06

A baliza desguarnecida de Sozinho Armando

Nélson Saúte – sociólogo e escritor moçambicano pouco conhecido em Portugal. A leitura de «O Apóstolo da Desgraça» levou-me a redescobrir novos sons, novas cores, o prazer de ler estórias. «A baliza desguarnecida de Sozinho Armando» é um dos contos que aqui reproduzo, com a devida vénia:

Sozinho Armando saiu do estádio superlotado de alegrias. Já descia o atalho que o levava do futebol, mas a multidão ainda lhe habitava, a claque vibrando em seus ouvidos. A imagem do jogador do Maxaquene ainda rematava na sua memória o golo da vitória. Era urgente comemorar. No bar O Bazuqueiro sentiu a sua multidão, aplaudindo a cerveja. Cada copo comemorava um golo. Lembrou-se da promessa à saída do estádio: hoje não vou bater na Esmeralda. Até lhe vou levar uma prenda, ela merece tal alegria.
De facto, ela merecia. Afinal, a paga dos seus sacrifícios eram pancadas, todos os dias, depois do encontro com os copos. Ela se encolhia nos seus choros, amparando os filhos para os proteger das sobras da porrada. Esmeralda ouvia os relatos, mesmo não gostando da bola. Queria saber se o Maxaquene ganhava ou não e assim adivinhava como seria a chegada do marido. Sozinho Armando descarregava nela a euforia das multidões. Debruçada sobre o Xirico, os rádios que o socialismo inundou no país, Esmeralda jogava à baliza do Maxaquene. O avançado adversário fuzilava o guarda-redes e ela levantava voo, os sonhos dela caíam sobre o parquet. Nessa tarde, ela também recebeu o troféu da vitória.
Entretanto, no bar O Bazuqueiro os copos vazavam-se na alegria de Sozinho Armando. Prenda! Para quê prenda?! Uma mulher não pode levar muito mimo, senão fica estragada.
Ele pensava na Esmeralda: será que ela ouvia o relato sozinha?! Como é que o vizinho, um gajo do Desportivo, sabia o que se passara no jogo mesmo sem ir ao estádio?! Ouvia na rádio?! Como, se ele não tinha rádio! Ou ouvia os relatos no Xirico familiar e ao colo exclusivo da Esmeralda?! A suspeita azedava mais que a cerveja. A alma embriagava-se mais de desconfiança que o álcool. Ele perguntava: será que a Esmeralda tinha coragem para fazer uma coisa dessas?! Mesmo com todas aquelas porradas que lhe dedicava, indubitáveis provas de amor?!
Não!, gritou ele, silenciando a multidão. E, de repente, o estádio ficou desabitado. Sentiu-se só, a baliza desprotegida, o vizinho avançando na grande área. O Desportivo estava prestes a concretizar quando ele derrubou a mesa, partindo todos os copos.
Mas como é?! Não há árbitro nesta merda do jogo?! Porque era bem visível que o vizinho estava fora de jogo, em nítida posição irregular. Assim confirmaram, rindo-se, os clientes do bar O Bazuqueiro.
Entretanto, em casa a mulher preparava a chegada triunfal do homem que trazia os golos nos ombros, galardoado de vitórias. Colocou à vista um vaso que Sozinho Armando chutara para um canto na anterior derrota. Remendou a dor daquela lembrança enchendo o vaso com flores. Foi mesmo mais longe, recolocando na parede o poster rasgado da mulher nua deitada sobre um carro. Olhou o rasgão no cartaz: aquela rotura era a fronteira que dividia o mundo dela e o dele. E depois sorriu: afinal, quem estava rasgado não era o papel mas aquela mulher que invadira a sua soberania. Que estrutura teria emitido guia-de-marcha para aquela mulher se intrometer no reino sagrado que era seu e dos seus filhos?! Mas agora, olhando de novo o cartaz, ela sentia-se dona da situação. Ela, Esmeralda, é que convidara a mulher nua a partilhar da alegre chegada de Sozinho Armando.
Já o seu contentamento enchia a sala, Esmeralda cantando tanto que a voz transbordava. Os vizinhos escutavam tamanha alegria, saudavam o Maxaquene, autor de golos e da felicidade tão momentânea de Esmeralda, sempre magoada de tristezas, sempre derrotada no campeonato da vida.
É então que chega a casa Sozinho Armando. Escutando o derramar da alegria, ele inquieta-se. Qual o motivo de tanta festa na Esmeralda?! Só podia ser a confirmação da sua suspeita: o vizinho do Desportivo marcara golo na sua baliza desguarnecida!

Nélson Saúte