O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

16.12.10

Quem sai do Lux e quer fazer inversão de marcha, no sentido do Terreiro do Paço, tem de passar por baixo do viaduto de Santa Apolónia. Só há tempos me apercebi de que alguns dos sem-abrigo de Lisboa escolhem aquele poiso para pernoitar. Abrando a marcha para me certificar de que são mesmo seres humanos que estão ali, naquela manhã muito fria.
Um homem de meia-idade, perturbado com os faróis do carro, levanta-se ligeiramente, envolto numa manta, e fita-me com os olhos muito abertos: «Há azar?!» Fico meio aflito e balbucio qualquer coisa do género: «Está tudo bem?»
O homem riposta, quase sem me deixar terminar: «Siga a sua vida!»
E sigo, mas perturbado com aqueles olhos muito abertos que ainda hoje me perseguem e «acusam» de pecados que julgo não ter cometido.
Se eu fosse presidente de câmara, juro que na minha cidade não haveria seres humanos a dormir debaixo das pontes... Mas como não sou e voz de «fogareiro» não chega ao céu, limito-me a este desabafo de indignação.