O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.12.06

Um sorriso contra o frio

Luminosa mas apressada, Maria José surge na esquina da grande alameda. Veste um longo sorriso contra o frio, como se fosse um cachecol. Tem uma memória justificativa para a pressa que nos leva a beber o café e comer a empada ao balcão. Em voz baixa explica o problema: «O meu pai abre a porta a toda a gente…» Ora abrir a porta a toda a gente é hoje em dia um problema na grande cidade, mas era habitual há sessenta anos, quando o pai de Maria José veio da aldeia para Lisboa para conduzir um táxi.
Arrumado o automóvel verde e preto, finda a corrida, o pai de Maria José faz fisioterapia todas as semanas e sorri para as netas que invadem a sua casa de tarde à procura do lanche e dos trabalhos de casa que se misturam com as brincadeiras próprias da idade. Maria José torna-se uma enfermeira sem diploma junto do pai e uma monitora infanto-juvenil junto das sobrinhas.
Tal como um poeta que morre para que o poema viva, tal como o autor que se dilui na obra, Maria José não tem tempo para si e veste um longo sorriso contra o frio e contra a sua solidão povoada. Mas o Mundo é pequeno e ainda tenho tempo para lhe recordar a semelhança entre a Fonte Luminosa e a sua aldeia lá na serra do Açor. Ambas são um Monte Frio. Só que este monte frio onde nos encontramos a correr é povoado por centenas de automóveis, é poluído por ruídos e faz um apelo à deserção.
O outro Monte Frio é um chamamento a ficar, entre as pedras da serra e a água do rio Ceira. Sem esquecer as casas, o calor da lareira, o fumo debaixo dos chouriços, o pão quente a sair do forno e o vinho que faz vibrar todos os sentidos de prazer. Luminosa mas apressada, Maria José surge na esquina da crónica e permanece mesmo quando diz adeus.

José do Carmo Francisco