O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

3.1.07

ESTRADA DE MACADAME – «Um momento de ternura e mais nada...»

A Estrada de Macadame é um pretexto; o que conta é a viagem dentro da memória. E tudo o que as minhas pequenas histórias possam precipitar junto dos leitores. Uma vez um grande escritor argentino (Jorge Luís Borges), cujo nome tem algo de português (os Borges de Moncorvo), escreveu: «Muitos se orgulham do que escreveram mas eu orgulho-me principalmente do que li.» As famosas memórias de Raul Brandão são um texto a que recorro com frequência como leitura de proveito e exemplo. Começa o grande escritor por perguntar: «A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o corpo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço sempre como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo.»
A infância surge assim como o ponto de partida para as memórias e o autor de «Húmus» não podia ser mais objectivo: «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas ou com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada.»
Falar da infância é um bom pretexto para falar do passado. Diz Raul Brandão no prefácio das suas memórias: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas no fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta, me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.»
Mas Raul Brandão não falava apenas de si nas suas memórias; falava também das grandes figuras do seu tempo, como por exemplo António Nobre. Vejamos estas palavras espantosas: «Fugiam dele antes de publicar o «Só»; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Era um Poeta. Desconheceu a vida prática. Tinha a consciência do seu valor e uma superioridade que não se podia aturar. Estávamos todos mortos para nos desfazermos desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma... Hoje é um dos poetas portugueses com mais admiradores. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque nunca misturou, como nós todos, o sonho com a vida prática. Ao contrário, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si próprio se encontrou.»
Tal como eu queria demonstrar, vale a pena ler estas memórias de Raul Brandão para concordar no fim: «A vida é um momento de ternura e mais nada...»

José do Carmo Francisco