O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

4.1.07

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há, porém, páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão, «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho qualquer sentimento político ou social. Tenho, porém, um alto sentimento patriótico. A minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, a página mal escrita, a sintaxe errada, a ortografia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente.

Fernando Pessoa