O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

16.1.07

Viagem com Ana Maria

De repente falámos de Veneza e as carruagens do Metropolitano sofreram nos meus olhos uma metamorfose, as estações ficaram inundadas e os seus nomes passaram a ser gritados em italiano pelo marinheiro fazendo sinal com o braço ao capitão para que a demora em cada paragem seja curta. Estamos num vaporetto prestes a chegar à Praça de São Marcos inundada de pombos e de japoneses com máquinas fotográficas da última geração. À esquerda o grande areal do Lido com as mesmas pequenas casas de madeira usadas nas filmagens de «Morte em Veneza». Todos os anos as pintam no princípio da época balnear. E porque são muito caras há quem viva em Veneza e as alugue para usar de manhã subalugando a amigos à tarde. Vejo nos teus olhos a imensidão do Mar Adriático sem ondas e apenas sacudido ao de leve pela passagem de um petroleiro a caminho do Sul. Vem de Trieste, do outro lado do Golfo. Oiço na tua voz as sílabas perdidas de todas as minhas viagens. Um voo nocturno para Milão, uma viagem de autocarro até Bolonha, uma viagem de comboio até Veneza. No bulício da estação de comboios de Santa Lúcia descubro a tua voz límpida, terna e alta como num passeio da Rua do Ouro em 1969. Ao fundo está não a Ponte de Rialto mas o Cais das Colunas e os cacilheiros lentos cruzando um rio triste onde chegam aerogramas amarelos com notícias de emboscadas e de feridos evacuados de helicóptero. Os aerogramas estão todos amarrotados nos bolsos dos casacos dos passageiros. Tenho de novo dezoito anos na tua voz porque a memória não mente. Entre a emoção e a verdade a memória escolhe sempre a emoção que é, também, todos o sabemos, uma forma de verdade.

José do Carmo Francisco