O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

5.2.07

A noite do Ano Bom do Gasogénio

Hoje gostaria de revelar um texto não meu mas de um poeta amigo que respirou comigo o mesmo ar da Estremadura e no seu livro «Roteiro Cego» recordou a passagem do ano deste modo:

Na noite de Ano Bom
iam os rapazes solteiros
para a Casa de Santa Susana
pequeno e vetusto pardieiro
junto à capela de São Gregório Magno
Aí se guardavam alfaias religiosas
lanternas de procissões
andores, bandeiras, círios
foguetes sobrados da última festa
Levavam vinho e pão
iscas de bacalhau, algum chouriço sacado à chaminé
fritavam filhós e velhozes
bebiam púcaros de café de cevada
eram pobres e crédulos, às vezes brigões
tratavam-se por alcunhas
discutiam Azevedo, Travassos, Peyroteo
Félix, Rogério, Ben David ou Teixeira – o gasogénio
à meia noite lançavam os foguetes da passagem
de um ano conformado à modéstia para outro seu igual
e depois percorriam as ruas escuras
esburacadas, lamacentas
tocavam chocalhos, campaínhas, harmónicas de beiços
cantavam desajeitadas loas
parando à porta de outros pobres ou remediados
meia dúzia de ricos
alguns são vivos mas a dureza das coisas
decerto os fez esquecer a velha casa de Santa Susana

Faltaria ainda dizer que se trata de memórias dos anos quarenta e cinquenta do século vinte, tempo de amor à camisola. Esse Teixeira referido no poema nasceu na Horta e tinha a alcunha de Semilhas, pois era filho de madeirense e dizia semilhas em vez de batatas. Mas a alcunha de gasogénio nasceu de no tempo da guerra os automóveis de aluguer (táxis) andarem com a botija de gasogénio às costas. Teixeira era amarrecado e daí a alcunha de gasogénio que o poema regista com ternura.

José do Carmo Francisco