O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

29.8.07

Fala do gasolineiro da Sobreira a caminho dos Montes da Senhora

Fecho devagar as portas do escritório da bomba de gasolina à beira da estrada de Castelo Branco. São 23 horas e tenho todo o tempo do Mundo para me fardar. As contas foram fáceis de fazer: não tem havido trovoadas e o sistema não tem ido abaixo. À medida que me afasto da Sobreira e me aproximo dos Montes começo a ouvir o som de um conjunto que recria êxitos da música pimba. Não vejo mas sei que há meia dúzia de pares arrastando os pés no largo em frente. Alguns pares são de duas mulheres. Os homens estão mais perto da cerveja e dos petiscos. O palco onde vou actuar fica entre o silêncio da igreja e o ruído sem limites deste camião que vomita luzes e sons de discoteca. A minha música é outra. Não preciso de ser antropólogo para saber que o exercício do folclore tem algo de insólito e, em termos práticos, é uma batalha perdida. Visto a farda, subo ao palco e, como num poema ou numa oração, junto de novo o que o tempo separou. Sou de novo um resineiro, um ceifeiro, um azeitoneiro cansado e com os dedos gretados pelo frio. A resina hoje é feita por processos químicos. Já não há resineiros. Também já não há ceifeiros. As máquinas fazem hoje esse trabalho que alucinava os homens num calor de forno. E não havia água fresca que matasse essa sede antiga. Amanhã, quando manhã cedo abrir o posto de gasolina da Sobreira, já sem a farda, voltarei a ser o gasolineiro. Mas no olhar acumulo o sorrido do meu par, a pureza da música da tocata e a luz das tarefas antigas (ceifar, colher resina, apanhar azeitona) quando a vida era mais lenta e a única velocidade era a dos animais. Por isso chamam cavalos à unidade de força dos motores dos automóveis que chegam aqui mortos de sede.

José do Carmo Francisco