O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

8.2.08

Sócrates e o lixo debaixo do tapete

João Miguel Tavares, jovem jornalista, assina crónicas interessantes no «Diário de Notícias». A mais recente chama a atenção para as opções de quem decidiu a primeira página do «Público» no dia em que o jornal divulgou a investigação sobre os projectos assinados por José Sócrates.

José Sócrates está tramado. Não há forma de sair airosamente deste novo Civilgate, agora descoberto na Guarda. Se a notícia do «Público» for verdadeira e ele realmente tiver andado a assinar projectos alheios, é uma tragédia ética. Se a notícia for falsa e aquelas moradias tiverem mesmo saído da sua cabecinha, é uma tragédia estética. Entre o bem e o belo, é natural que Sócrates se agarre ao bem, que é qualidade mais apreciada num político, mas quando olhamos para aquelas fotografias de casas de emigrantes horrendas made by José damos todos graças a Deus de o homem ter optado pela política em detrimento da engenharia.
Entalado entre dois desastres, Sócrates reagiu de forma desastrada. Eu começo a desconfiar que quem assina o boletim de militante socialista deve ser inoculado com algum vírus que o leva a gritar «cabala» sempre que confrontado com factos desagradáveis. Eu tinha o nosso primeiro-ministro em melhor conta. Transformar uma notícia perfeitamente legítima, bem fundamentada e assinada por um dos poucos jornalistas que em Portugal ainda fazem investigação a sério, num «ataque pessoal e político» é uma pouca-vergonha. Se Sócrates entende que se trata de uma calúnia, então apresente factos - e não gritinhos histéricos.
Eu, pelo meu lado, o que gostava de saber não é porque é que o «Público» persegue José Sócrates - é porque é que o «Público», tendo uma notícia deste calibre nas mãos, optou na primeira página por a colocar em rodapé. É que convém estar atento aos detalhes. Para quem não reparou, a manchete do «Público» na sexta-feira foi «Democracias fecham os olhos aos abusos das ditaduras, denuncia ONG», o que para além da elegância da formulação é algo de tão original quanto dizer que as galinhas têm penas e que os cães fazem ão-ão. Ou seja, aquela primeira página não mostra que Sócrates é perseguido - mostra, pelo contrário, que Sócrates mete demasiado medo a demasiada gente, como depois se comprovou pelo manto de silêncio que caiu sobre as pessoas envolvidas na notícia. E este silêncio, francamente, começa a cheirar muito mal.
É que por muita tolerância que o povo português tenha para com a pequena trapaça - e tem, e muita -, há sempre um momento em que se esgota o espaço debaixo do tapete: empurra-se o lixo, mas ele já não cabe. Para Sócrates, este pode muito bem vir a ser esse momento. Ao garantir, preto no branco, que todos aqueles projectos são da sua autoria e responsabilidade, ele cometeu um erro estratégico: enterrou-se neste caso até ao pescoço. Agora, se for apanhado, não tem como sair de mansinho. Uma mentira destas nem o padre Melícias consegue absolver.

João Miguel Tavares