O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

3.3.09

«Quase gosto da vida que tenho»

O cliente pede-me para transportá-lo ao Estoril. O diálogo acontece e fico a saber que estou em presença de um escritor português, não muito badalado, mas de reconhecido valor. O seu nome não me é desconhecido, mais como dramaturgo, mas também de crónicas no «Público». Chegados ao destino, pede-me para aguardar uns minutos, enquanto se dirige para casa. Regressa e oferece-me três livros («Rosa Vermelha em Quarto Escuro»; «A Noiva Judia»; «Quase gosto da vida que tenho»). Fico sensibibilizado com o gesto. Ainda há gente assim... Obrigado, Pedro Paixão!

PS – Mal cheguei a casa, tratei de vasculhar «tudo» (no Google) sobre o meu ilustre cliente. Depois... Bem, depois «ataquei» um dos títulos («Quase gosto da vida que tenho») e prometo, nos próximos dias, não dedicar ponta de atenção aos Freeports do nosso descontentamento. Há «coisas» muito mais interessantes...

«Quase gosto da vida que tenho. Não foi fácil habituar-me a mim. Tive de me desfazer das coisas mais preciosas, entre elas de ti. Sim, meu amor, tive de escolher um caminho mais fácil. O dinheiro também tem a sua poesia. E tenho tido sorte. Deixei para trás a obrigação de mudar o mundo. Já cometi corrupções. Só ainda sinto dificuldades em mentir, mas também aqui vejo melhoras. Trata-se só de deformar ligeiramente o que vai acontecendo, não de inventar tudo de novo. Tenho mais alguns anos diante de mim e depois quero acabar de repente. Não sei se valeu a pena mas também não me pergunto se valeu a pena. Há muitas coisas assim. Não é desistir, é só dar demasiada importância a coisas que não a têm. A vida é uma delas. Ganha um valor particular quando deixamos de a encarar como o centro de tudo. É só por acaso que gostamos das flores e do mar. E, claro, que é um bom acaso. Mas mais do que isso não. Quase gosto da vida que tenho. Quando a quis toda não gostava de mim. Agora há dias em que aceito que o tempo passe por mim e me leve para onde só ele sabe.
...Vivo sozinho. Passam pessoas, mas nunca ficam por muito tempo. A partir de certa altura intrometem-se tédios por entre as frases e não sabemos continuar. Não insisto. Há muitas pessoas. Não vale ter medo. Há muito que o amor mostrou ser um fracasso. No dia seguinte, no escritório, esperam-me problemas por resolver e decisões que valem dinheiro. Não posso sofrer. Claro que por vezes me sinto triste como toda a gente. Mas é uma tristeza doce, como um descanso. E como não espero nada, não faço nada. De uma maneira ou de outra também acabarei por adormecer esta noite.»
Pedro Paixão