O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

8.5.09

Uma manhã no Chiado

Todas as manhãs o Chiado é uma romaria. Será uma maneira de dizer. Às dez da manhã em ponto uma pequena multidão já não cabe no adro da igreja. O mesmo é dizer não cabe na confluência da Rua do Carmo com a Rua Nova do Almada. Segundos depois das dez, o sacristão vem abrir a porta da igreja. O mesmo é dizer o jovem segurança vem abrir de par em par as portas do templo do consumo. Como que impelidos por uma mola, frenéticos, ansiosos, todos se dirigem apressados para os sues destinos como se o Mundo dependesse dos seus gestos nervosos e tensos. Cada um tem o seu objectivo. Uns procuram as lojas de roupa (lembram os paramentos), outros procuram os cafés (lembram as galhetas da água e do vinho), outros ainda procuram a loja das sandes (lembram as partículas de pão ázimo antes da consagração). No templo do consumo até o ruído dos travestis com as suas piadas soltas de mesa para mesa («Tá calada oh preta! És uma parva!») lembra o soar das malhas do jogo do chinquilho nos minutos parados antes da missa das onze nos domingos de manhã. E há aquele escritor pouco conhecido que ergue o jornal «Público» como quem segura um hissope ou uma caldeira de água benta e se dirige à FNAC para rezar sozinho tal como nos tempos da minha infância algumas senhoras da minha terra acompanhavam à distância a missa da paróquia nas suas capelas particulares sentadas nas suas cadeiras forradas de veludo vermelho. Todas as manhãs o Chiado é uma romaria. Será uma maneira de dizer. Mas não vejo passar ninguém com a saca vermelha das esmolas para as almas do purgatório. Talvez porque o purgatório é eu estar aqui entre esta multidão frenética e ansiosa.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO