O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

7.3.11

Nos intervalos das «corridas» sobra tempo para leituras. Há um taxista em Lisboa que se faz acompanhar da Bíblia; por mim, não vou tão longe, mas não dispenso um jornal diário e algumas revistas. Gosto de ler José Eduardo Agualusa, a quem tive o prazer de transportar ontem. E reproduzo aqui, com a devida vénia, excerto de uma crónica antiga publicada na «Pública».

Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso, odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço: «Vamos dançar?» E lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e do volume da música.
Terminado o número, um tanto humilhado, confesso, porque tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode: «O que foi, meu velho? Estás chateado?»
E eu, que não, esforçando-me por sorrir, por rir às gargalhadas, como o resto da chusma. Chateado? Porque havia de estar chateado? O dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou..., e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim.
Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sobriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o, de repente, tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum: visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.
(...)
José Eduardo Agualusa