O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.12.07

Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.
António Ramos Rosa

22.12.07

Foi governador de um dos estados do Brasil. Está a cumprir um «tour» pela Europa, acompanhado por mais sete familiares. Anteontem, eu e outro taxista servimos de guias turísticos em Lisboa. Pareceu-me que ficou satisfeito com a prestação do serviço, a ponto de ter combinado uma viagem a Fátima e Coimbra, com provável almoço de leitão na Bairrada. Hoje, pela manhãzinha, tratei de mandar lavar e aspirar o Mercedes 200. Ficou um brinquinho, pronto para brilhar na A1. Dirijo-me ao hotel, onde o meu companheiro taxista já aguardava. Às tantas, surge uma senhora da comitiva do senhor governador a avisar que a viagem foi cancelada, porque «a minina passou mal a noite» (a «minina» é uma criança). Ora bolas!

PS – O governador é pessoa já avançada na idade e tem o nome do meu avô paterno. Fiquei com curiosidade de dialogar com tal personagem da política brasileira, mas não calhou... Entretanto, com a ajuda da Internet, descobri «coisas» interessantes sobre o senhor governador, enquanto dirigiu, durante largos anos, os destinos daquele estado brasileiro. Entre elas, foi acusado de corrupção e de ter constituído fortuna de forma ilícita. Lá como cá, as «coisas» não são muito diferentes. Só mudam os personagens...

13.12.07

Schumacher taxista

Afastada a possibilidade de voltar às corridas, Michael Schumacher tornou-se... taxista! Não, o heptacampeão mundial de F1 não enveredou por nova profissão, mas optou por conduzir ele mesmo um táxi, transformando o condutor em pendura, para chegar a tempo ao aeroporto de Munique. Não perdeu o avião e o taxista, além de 100 euros de gorjeta, ainda descobriu que a sua máquina é capaz de voar!

Seguir viagem para o aeroporto em cima da hora de embarque pode ser uma grande dor de cabeça e uma experiência, no mínimo, stressante para qualquer dos mortais, menos para a família Schumacher. Mesmo quando o meio de transporte é um táxi! Isso mesmo provou o heptacampeão ao desempenhar as funções de taxista, provando, naturalmente, estar à altura, conforme relatou a imprensa germânica.
O alemão fez recordar os seus tempos de piloto mais rápido da F1 (dos quais não terá ainda muitas saudades, quando ainda há pouco tempo regressou à pista nos treinos colectivos, em Espanha, para voltar a dominar) para não perder um voo na Alemanha.
Com receio de chegar atrasado ao aeroporto de Munique, o heptacampeão, de 38 anos, que se fazia acompanhar da mulher e dos filhos, deve ter percebido que não iria chegar a tempo com o taxista que lhe tocou. Não hesitou em deitar mãos à obra, ou seja, agarrar o volante e conduzir ele próprio o automóvel, depois de ter perguntado ao taxista se podia trocar com ele de posição, pedido a que este prontamente acedeu, para viver nos minutos seguintes uma experiência memorável à boleia do heptacampeão mundial de F1.
«Passei para o banco do passageiro, ao lado de Schumi. Foi incrível», contou o taxista Tuncer Yilmaz ao jornal «Abendzeitung», de Munique. «Efectuou ultrapassagens incríveis e fez as curvas a toda a velocidade», acrescentou o motorista, que além da emoção ainda teve direito a generosa gorjeta — 100 euros a juntar aos 60 que marcava o taxímetro — e, claro, descobrir que o seu táxi é capaz de voar!
Quanto a Schumacher, chegou a horas ao aeroporto para se deslocar a Cobourg, a fim de ir buscar um cão chamado «Ed» a uma criadora das redondezas, como explicou a porta-voz do ex-piloto, Sabine Kehm, que confirmou o episódio à agência alemã de informação desportiva SID.

Guida Ferrer, in «A BOLA» de 12-12-2007

Olhar o monte (viagem)

Vejo o monte quando olho para ti.
Tu não sabes mas o teu olhar é uma porta aberta, um convite, uma sugestão de caminho. Olho-te na cidade e penso logo no campo, penso logo na brancura das casas, no azul das barras, no castanho das telhas.
Cheguei aqui cansado, vinha a transpirar, os pés pesavam toneladas e, morto de sede, só descansei quando me deste um copo de água tirada de uma bilha no louceiro. A única música que aqui chega é a do vento, capaz de secar a roupa estendida e as tuas lágrimas.

Vejo o monte quando olho para ti.
Vejo nos teus passos o prenúncio do movimento. És tu que seguras o alguidar da roupa que vais estender entre a última casa e a primeira árvore. Tal como foste tu a sacudir o sono e a trazer à vida do monte a sua velocidade.
Há uma ordem, uma perfeita sintonia de aromas que mistura de modo sábio o odor das flores silvestres aqui à volta e o lento cozinhado por ti decidido no espaço da cozinha onde muitas vezes preparar a refeição é mais do que arte; é uma ciência.

Vejo o monte quando olho para ti.
Habito o espaço sentimental desta imagem por ti povoada. É um dia luminoso, o monte repousa e apenas o esvoaçar da roupa que tu estendeste lembra que vive aqui alguém. As tarefas quotidianas ocupam os seus locatários. Uma humidade difícil de medir percorre e liga a ternura dos teus olhos à respiração da terra.

Vejo o monte quando olho para ti.

José do Carmo Francisco

12.12.07

Rua Augusto Macedo – taxista (1904-1997)

Ser taxista é duro e desgastante, mas também existe o lado positivo. Cada cliente é uma caixinha de surpresas. Há tempos senti dificuldade em lidar com um drogado, em ressaca. Conduzi o carro (e a conversa...) de forma a levar o barco a bom porto. Dialogando sempre, ouvindo o que o jovem tinha para desabafar.
Aprendo sempre algo com os clientes. Como foi o caso daquela senhora idosa que transportei do El Corte Inglês para Telheiras.
– É para a Rua Augusto Macedo. Conhece?
Não conhecia. Mas a senhora idosa, com grande simpatia, deu-me uma ajuda.
– O ponto de referência é o Carrefour. A maioria dos seus colegas não sabe que Augusto Macedo foi taxista.
Lá está, bem no coração de Telheiras: «Rua Augusto Macedo – taxista; 1904-1997» Fiquei a saber que os taxistas estão perpetuados, através de Augusto Mateus, numa rua de Lisboa. E bem merecem! Aliás, merecem muito mais... Talvez uma grande avenida, daquelas que atravessam a cidade. Mas já foi bom saber que alguém se lembrou desta classe tão desprotegida.
Ainda a propósito de Augusto Macedo. Foi contemporâneo do meu tio Bernardino, mais conhecido por «Crespo» – taxista desde que me lembro, já falecido. Guardo do meu tio as mais gratas recordações. Viajei imensas vezes no seu táxi e nunca esqueci a matrícula: DD-88-OO. Era um Homem de grande humanismo e, estou certo, fez amizade com muitos clientes. Também merecia ser perpetuado numa rua desta Lisboa que foi sua. Conhecia-lhe todos os segredos, todas as artérias, todo o seu pulsar.
Lembro-me muitas vezes do meu tio «Crespo», em especial quando paro na «sua» Praça Paiva Couceiro. E revejo-o em muitos taxistas idosos que continuam «agarrados» às máquinas. Como se Lisboa fosse a sua casa e não conseguissem desligar-se dela.

10.12.07

António Martins, o jornalista que gostava de Vermeer

Pausa para tomar um cafezinho com o amigo José do Carmo Francisco, num novo espaço da Rua da Rosa (Bairro Alto), um bar simpático recheado de poesia. As conversas são como as cerejas e às tantas estávamos a recordar um amigo comum, o jornalista António Martins, recentemente falecido. O texto que se segue é da autoria de JCF, em homenagem ao amigo desaparecido.

A morte de um jornalista não é notícia. A menos que tenha ganho um Pulitzer, mas então passou a ser uma personalidade. Mas há excepções. Morreu o António Martins, um homem que, com 79 anos, passou por todas as tecnologias, por todas as redacções, por todas as modalidades. Trabalhei com ele entre 1996 e 2006, no «Sporting». Mas já o conhecia de «O Século», do «Diário Popular», de «A Bola», do «Record».
Tenho uma história passada com ele numa manhã em Barroca de Alva. Eu estava num Sporting-União de Leiria do Nacional de juvenis, ele estava num jogo do campeonato distrital. No intervalo fui espreitar o jogo do Nacional de iniciados e o jornalista tinha faltado. Liguei-lhe para o telemóvel e não atendeu. Pensei logo no pior, um acidente, um problema de saúde. Não respondia. O Martins fez o seu trabalho e veio à sala de imprensa para saber o meu resultado. Viu a minha cara, achou muito estranho o que se estava a passar. «Vamos desenrascar isso!», foi a sua resposta. Saiu disparado e foi ao autocarro do Estoril-Praia. Minutos depois tinha a ficha do jogo, dada pelo delegado dos «canarinhos». Foi comigo à cabina do Sporting e arranjou a ficha do delegado do Sporting. O treinador contou o jogo e nós fizemos a crónica que assinámos em equipa. Os leitores não tinham culpa de que o jornalista tivesse adormecido.
A segunda história tem a ver com uma entrevista que lhe fiz em 2005. Houve quem achasse insólito o seu gosto pela pintura de Vermeer. Adorava «O soldado e a mulher risonha». Um jornalista desportivo tem o direito de gostar de pintura como qualquer outra pessoa. Gostar de Vermeer só lhe ficava bem.
Hoje vai ser cremado. Está uma bela manhã de sol. Não é a luz do mestre de Delft, mas é também uma luz feliz, uma luz que aquece o rosto e ajuda a doirar as lágrimas dos seus amigos.

José do Carmo Francisco

8.12.07

Hoje, ao vaguear por Lisboa, mais parecia que estava em Madrid, tantos foram os espanhóis que aproveitaram o feriado de sexta-feira para nos visitar. Esta noite, ao passar numa das ruas do Bairro Alto, quase só ouvi falar castelhano. Fim-de-semana louco em Lisboa. A cimeira UE/África mexeu com a cidade. E de que maneira! Hotéis de luxo esgotados, trânsito cortado, polícia e mais polícia (há meses que não vislumbro um polícia na minha rua...). Estive quase uma hora para atravessar a Av. da Liberdade... Sirenes e mais sirenes, parecia Bagdad, mas sem tiros! Como se não bastasse a cimeira, ainda tivemos o congresso europeu de médicos (eco)cardiologistas (3.000, na antiga FIL) e... a «invasão» espanhola. Um dia em cheio para os «fogareiros»!

7.12.07

Manuel António Pina escreveu sobre um certo jornalismo que anda à solta, no qual, como sublinhou, nada acontece, tudo «poderia ter acontecido» ou «poderá acontecer». Com a devida vénia, respiguei o texto que se segue do site do Clube de Jornalistas.

Uma das características de algum jornalismo que hoje por aí se faz é que nada acontece, tudo «poderia ter acontecido» ou «poderá acontecer». Outro dia pus-me a contar os futuros e condicionais de uma «notícia» de uns poucos de períodos publicada no «Correio da Manhã» sobre o desaparecimento de Maddie McCann. Ao todo, contei 10 condicionais e futuros hipotéticos para um único e glorioso «foram».
A «notícia», assinada por uma jornalista «de investigação», era só uma ociosa enumeração de suposições: as análises «podem ser» hoje enviadas para Portugal; um cão pisteiro «ter-se-á mostrado» nervoso, o que «poderia indiciar» não sei o quê; «a utilização de cães pisteiros «terão sido sugeridos» (sic) pelos ingleses; um amigo dos McCann «terá levantado» suspeitas; um inglês «poderá ser extraditado»; os McCann «terão arrendado uma casa»; etc...
Por outro lado, as raras vezes que, em tal jornalismo, algo acontece, acontece «alegadamente»: a mulher foi alegadamente atropelada, o sinal verde estava alegadamente aceso, o automobilista teria alegadamente dois gramas de sangue no álcool. E tudo segundo fontes «próximas» de qualquer coisa, pois os jornalistas, hoje, não afirmam nem confirmam, repetem. Por estas e por outras, cada vez admiro mais o «Borda d'Água»...

Manuel António Pina

5.12.07

Gare do Oriente – «Preciso de estar antes das 9.30 h no Estabelecimento Prisional de Lisboa, na Rua Marquês de Fronteira. Acha que consegue?» Atravessar Lisboa àquela hora da manhã (nove) é muito difícil, por isso, limito-me a responder: «Vamos tentar! Posso inventar?» Escolho um percurso alternativo, fujo à Segunda Circular e à Avenida Estados Unidos da América, duas vias importantes de acesso ao centro da capital. Chego uns minutinhos antes da hora. E respiro de alívio...
[A jovem tem ar cansado, mas os olhos, azul cor de mar, esses sobressaem no espelho retrovisor.]
«A minha filha passou mal a noite. Só adormeci pela manhã e... atrasei-me», diz, enquanto segura um saco de comida para o pai da sua menina (de um ano), a cumprir pena naquele estabelecimento prisional.
– A sua filha também tem uns olhos assim bonitos?
– São iguais aos meus...
Antes de sair a correr, a jovem desabafa com o taxista: «Ele não tinha necessidade de se meter nisto...»

3.12.07

Tocando em frente


Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais.
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei.
Eu nada sei.
Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs.
É preciso amor para poder pulsar
É preciso paz para poder sorrir
É preciso chuva para florir...
Penso que cumprir a vida seja simplesmente
Compreender a marcha, ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
Eu vou tocando os dias pela longa estrada
Eu vou, estrada eu sou...
Todo mundo ama um dia, todo mundo chora
Um dia a gente chega, no outro vai embora.
Cada um de nós compõe a sua história.
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz.

Almir Sater-Renato Teixeira/Maria Bethânia