O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

27.11.07

Último serviço desta segunda-feira. Circulo na zona de Alcântara e decido «picar» na antiga FIL, onde está a decorrer um congresso internacional sobre a medicina e o sexo. Vejo o cliente aproximar-se, o prof. Júlio Machado Vaz – figura de médico e escritor que muito admiro, autor de larga obra publicada, como o «Sexo dos Anjos» e «O Tempo dos Espelhos», entre muitos outros títulos.
[Não perdia os «Difíceis Amores», na RTP. Agora, sempre que posso, sintonizo a Antena 1, onde o «prof.» nos fala, de forma arejada e bem-humorada, de sexo e não só...]
Transporto Júlio Machado Vaz ao hotel. Tem pressa, porque tem de estar no lançamento do seu novo livro («O Amor É...»), no Parque das Nações. Durante a curta viagem, tempo para confirmar aquilo que eu já sabia: trata-se de um homem afável, contagiante, um comunicador nato! Faz-me lembrar outro grande comunicador, Vitorino Nemésio.
Falámos de Lisboa e do Porto, de Serralves, de blogues (JMV é autor do «Murcon») e... do «nosso» Benfica! Sim, porque este portuense de gema é adepto do clube da águia...

26.11.07

É húngara a mulher que hoje transportei ao Palácio da Pena, em Sintra. Uma boa «corrida» que me ajudou a safar a «folha», em tempo de vacas magras... Fiquei sem conhecer a sua profissão, porque tive pudor em perguntar-lhe. Fala espanhol com fluência e entende um pouco de português. Eva de seu nome.
Esta é a quarta vez que visita Portugal. Já conhece Lisboa, Óbidos, Arrábida, Cascais..., mas nunca tinha ido a Sintra. Calhou agora!
Subo a serra em direcção ao Palácio da Pena. Curvas e mais curvas, sob vegetação frondosa. Palacetes antigos recuperados. «São privados?», quis saber Eva. «Alguns são», respondi-lhe.
Às tantas, a meio da serra, olho-a de frente e deixo escapar: «Os mistérios da serra de Sintra...» Disse isto como quem diz «chove» ou «está bom tempo», mas ela nem me deixou terminar: «Eça de Queirós!»
Fiquei pasmado! «Conhece Eça de Queirós?», perguntei-lhe. «Conheço! Gosto muito de ‘O Crime do Padre Amaro’», respondeu-me, com um sorriso jovem e bonito.
– Obrigado!
– Köszönöm!

21.11.07

Praça do Centro Comercial Vasco da Gama – A jovem dirige-se-me e pergunta: «Preciso de ir para a Universidade Lusófona, no Campo Grande. Mas só tenho cinco euros... Acha que chega?» Penso um bocadinho: «Chega! Ainda vai sobrar dinheiro...» Arranco pela Avenida de Berlim e, sem ela se aperceber, desligo o taxímetro quando estou a chegar à Rotunda do Aeroporto. Sigo pela Avenida do Brasil e, às tantas, ela diz-me: «Mas isso não vai a contar...» Respondo-lhe, com um sorriso: «Não faz mal! Assim sempre fica com dinheiro para um bolo e um cafezinho...»Vida difícil, a de estudante!

14.11.07

Isto está muito morno! Os euros não dão para a bucha, quando mais para andar de táxi... Coisas do défice e do rigor (?) orçamental do nosso «primeiro» Sócrates. Às nove da manhã já estou empanturrado de jornais «gratuitos». Sobra-me tempo, mas já não há pachorra para certo tipo de leituras. Em todo o caso, há dias li uma notícia gira que não resisto a contar: um patrão italiano experimentou viver, durante um mês, com o ordenado médio dos seus trabalhadores. O dinheirinho durou apenas até ao dia 20! O homem, num gesto de boa vontade, aumentou todo o pessoal. Ora aqui está um exemplo que o nosso «primeiro» podia seguir... Ele e outros adeptos fanáticos do rigor orçamental... Rigor para quem?

13.11.07

A viagem foi curta e terminou na Rua da Graça, junto ao antigo cinema Royal (hoje um supermercado), onde vi muitos filmes na adolescência. A senhora idosa simpatizou com o taxista e iniciou uma longa conversa. A solução foi estacionar o carro e ficar ali a ouvi-la, durante um bom quarto de hora. Mora no prédio onde também viveu o poeta Ary dos Santos. Foi casada com outro poeta, Alexandre O’Neill, de quem teve um filho. Foi realizadora de cinema e televisão, com vasta obra editada, nas áreas da ficção e do documentário. Fez a montagem de «O Passado e o Presente», filme realizado por Manuel Oliveira... Falo de Noémia Delgado, uma senhora idosa que tive o privilégio de conhecer. Que me falou de poetas que muito admiro (Ary dos Santos, Alexandre O´Neill, Ramos Rosa...) e de muito mais.

12.11.07

Fotografia da filha do taxista na Morais Soares

Não te voltes! Continua
Suspensa no teu olhar
Entre ti e o fim da rua
É que eu quero ficar
Nos choupos havia aves
Hoje há melancolia
Sem sons agudos e graves
Ficou a rua vazia
Na rua desse retrato
Havia sempre lugar
Para um secreto contrato
Entre viver e sonhar
Porque o passado vivido
Está perto do sonhado
Hoje há lá tanto ruído
Que tudo fica ligado

Só tu nunca alteraste
O sorriso e o olhar
Vais resistir ao desgaste
Sempre que eu te chamar
Os anos não vão passar
Na tua fotografia
As sombras não vão rasgar
As manhãs desta alegria
Por isso te peço agora
Como num verso esquecido
Que sempre na vida fora
Respondas ao meu pedido
Não te voltes! Continua
Suspensa no teu olhar
Entre ti e o fim da rua
É que eu quero ficar

José do Carmo Francisco

8.11.07

Jurei (a brincar), perante um dos porteiros do Hotel Pestana Palace, que um dia hei-de ficar lá hospedado, nem que seja só uma noite. Desconheço o preço exacto da diária (das mais baratinhas), mas julgo que rondará um ordenado mínimo nacional. Gosto do palacete do Alto de Santo Amaro, hoje um dos melhores hotéis de Lisboa. Todos os dias vou lá mais que uma vez, na expectativa de me calhar uma boa «corrida». Às vezes acontece... Hoje transportei uma francesa de meia-idade ao Centro Cultural de Belém. Mulher elegante e muito bem «paginada» (como diria um amigo meu), mas o que mais me tocou foi o cheirinho a perfume (francês?). Uma coisa do outro mundo, a ponto de ainda agora, volvidas mais de oito horas, sentir nas narinas (ou no cérebro?) aquele odor tão especial. Gente fina é outra coisa...

7.11.07

Balada da filha do taxista na Morais Soares

Fui da tua turma
Mas sem tu saberes
À porta da Escola
Patrício Prazeres
Nunca eu consegui
Ter as tuas notas
Poucas as vitórias
Muitas as derrotas
Quando tu passavas
Ficava a olhar
No próximo carro
Não tinha lugar

Em setenta e dois
No fim do Império
Tive duas madrinhas
Um grande mistério
E o aerograma
Nunca mais chegava
Qual delas escrevia?
Qual delas sonhava?
Chamava-se Hermínia
Ou Maria José?
No fim do Império
Era o fim da Fé

Na rua da Vida
Fiquei no passeio
Tiraram a árvore
Que havia no meio
A sombra do tempo
Não passou por ti
A fotografia
Nunca mais a vi
Ficou o sorriso
E o mesmo olhar
A força da voz
Neste teu lugar

E nas férias grandes
Eras já mulher
Entre duas escolas
Passaste a correr
Ficou o retrato
Na Morais Soares
Todas a saírem
Só tu a ficares
Ficou o poema
Modesto registo
Só tu permaneces
Eu não sei se existo

José do Carmo Francisco