O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

21.5.09

Morar na Costa do Castelo (de São Jorge), num daqueles apartamentos recuperados, é um privilégio só ao alcance de alguns. A vista sobre a cidade é deslumbrante, o pior é o estacionamento, as ruas são estreitas, mas os novos inquilinos não estarão muito preocupados, porque as «novas» casas têm garagens.
Transportei uma jovem médica à Costa do Castelo, bem perto do Chapitô. Pediu-me para aguardar um bocadinho, lá descobri uma nesga para estacionar o táxi e fui tomar um cafezinho. Regressou e rumámos ao Saldanha. «Fui amamentar o meu bebé. Apetecia-me ficar com ele toda a tarde, mas não é possível...»
É agradável quando se estabelece uma relação de confiança entre as pessoas. E senti que mereci a confiança daquela jovem mãe, a ponto de ela ter desabafado, espontaneamente, sobre a sua vida pessoal. Bem sei que anda por aí muita gente de espada em riste, mas essa não é a minha gente...

19.5.09

O Adriano é um jovem jornalista, agora a militar no «ionline». Um destes dias coube-me transportá-lo à sede do novo diário, no Tagus Park. Deu para rever um bom amigo e pôr a conversa em dia, até porque o trânsito estava caótico (fim de tarde) e a viagem demorou mais que o previsto, também pelas razões que o Adriano explica no seu blogue do «ionline» e que transcrevo a seguir, com a devida vénia.

[A propósito do «ionline», é de louvar a coragem de lançar um novo jornal nestes tempos de crise. A impressão do primeiro número não foi boa, as coisas não saíram bem no aspecto gráfico, mas tem vindo a melhorar e creio ser já uma lufada de ar fresco no panorama da imprensa lusa.]

Dezanove horas e dois minutos. Final do dia. O trânsito habitual para sair de Lisboa, a baixa cheia de carros, Avenida da Liberdade em obras. Filas, apitos, caos. De repente, um camião TIR a rodar a cinco quilómetros/hora. Feliz por atrapalhar ainda mais, com uma banda a tocar lá no alto. O marketing de guerrilha também consegue ser genuinamente parvo.
Percebi, pela decoração do camião, que a «iniciativa» tinha o carimbo da banda Ez Special. Tocavam uma daquelas «malhas» típicas de banda sonora de novela da TVI. Faltou perceber o motivo desta acção em tão despropositado horário: novo álbum? início de tournée? garantir visibilidade na informação de trânsito da SIC Notícias e da RTPN? Desconheço…
Sei apenas, nos cinco minutos que demorei a ultrapassar o dito camião, que esta assinalável acção de marketing gerou um impacto tremendo no interior de um táxi que transportava três groupies frenéticas. Três. À sua volta seriam pelo menos três centenas os condutores que lamentavam a genialidade do responsável autárquico que aprovou isto.
Feitas as contas, arriscaria dizer que a iniciativa foi contraproducente. Mas isto sou eu, que não percebo nada destas coisas de ROI e de eficácia publicitária. Percebo apenas de transtornos automobilísticos.

ADRIANO NOBRE

10.5.09

O nome errado dos meses

O nosso mundo não é dado a muito tempo para reflexões, mas quem queira arriscar ainda se pode dar a esse pequeno luxo. Num tempo tão veloz, é mesmo um luxo pensar nas coisas e na razão de ser das coisas. Por exemplo: tentar perceber como é que o mês nove tem um nome começado por sete, o mês dez tem um nome começado por oito, o mês onze tem um nome começado por nove e o mês doze tem um nome começado por dez. Diz-se que Rómulo criou um calendário com 304 dias e dez meses. Com o andar da carruagem, os meses começaram a andar deslocados do tempo solar e outro rei, Numa, acrescentou os meses de Janeiro e Fevereiro.
Foi assim que os nomes dos quatro últimos meses do ano começou a ficar em desacerto com a sua posição no calendário. Setembro é o nono mês, mas escreve-se com sete; Outubro é o décimo mês e escreve-se com oito; Novembro é o décimo-primeiro, mas escreve-se com nove; e Dezembro é o décimo-segundo, mas escreve-se com dez.
Mais tarde, Júlio César ordenou que o ano começasse em Janeiro e não em Dezembro, mas não mudou os nomes e o Papa Gregório XIII, ao instituir o calendário gregoriano, apenas rectificou um aspecto: os trabalhos astronómicos baseavam-se num ano de 365 dias e seis horas; na realidade, o movimento da Terra em volta do Sol dura 365 dias, cinco horas, 48 minutos e 47 segundos.
Desta situação resultou um atraso de 11 dia entre o tempo solar e o tempo do calendário desde a época de Júlio César até ao Papa Gregório XIII, em 1582. Tem sido possível acertar tanta coisa, o próprio ano bissexto é uma maneira de haver um acerto entre tempo solar e tempo do papel pendurado na parede. Mas o nome dos últimos quatro meses continua errado.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

9.5.09

Sou taxista diurno, mas de vez em quando faço umas incursões na noite, aos fins-de-semana. Como aconteceu neste sábado. Estou consciente de que a noite tem códigos muito diferentes e não arrisco em demasia. Surgem situações inesperadas e é preciso estar atento às armadilhas da floresta...
Viajo no bairro do Restelo, por volta das cinco horas da madrugada. O tempo está chuvoso e na zona, de moradias, não se vê vivalma. Às tantas, depara-se-me o vulto de uma mulher ainda jovem. Faz-me sinal e o meu primeiro pensamento foi de que precisaria de ir ao hospital.
– Levas-me à Portela? [de Carnaxide]
Fixo-a bem e reajo de imediato:
– Sabe bem que não vou à Portela, a esta hora...
– Então, posso ficar junto ao Alegro (centro comercial).
A meio da viagem, a jovem diz-me que não tem dinheiro para a «corrida» e argumenta com outras formas de «pagamento». Faço de conta que não entendo, deixo-a no Alegro e... sigo a minha vidinha.

8.5.09

Uma manhã no Chiado

Todas as manhãs o Chiado é uma romaria. Será uma maneira de dizer. Às dez da manhã em ponto uma pequena multidão já não cabe no adro da igreja. O mesmo é dizer não cabe na confluência da Rua do Carmo com a Rua Nova do Almada. Segundos depois das dez, o sacristão vem abrir a porta da igreja. O mesmo é dizer o jovem segurança vem abrir de par em par as portas do templo do consumo. Como que impelidos por uma mola, frenéticos, ansiosos, todos se dirigem apressados para os sues destinos como se o Mundo dependesse dos seus gestos nervosos e tensos. Cada um tem o seu objectivo. Uns procuram as lojas de roupa (lembram os paramentos), outros procuram os cafés (lembram as galhetas da água e do vinho), outros ainda procuram a loja das sandes (lembram as partículas de pão ázimo antes da consagração). No templo do consumo até o ruído dos travestis com as suas piadas soltas de mesa para mesa («Tá calada oh preta! És uma parva!») lembra o soar das malhas do jogo do chinquilho nos minutos parados antes da missa das onze nos domingos de manhã. E há aquele escritor pouco conhecido que ergue o jornal «Público» como quem segura um hissope ou uma caldeira de água benta e se dirige à FNAC para rezar sozinho tal como nos tempos da minha infância algumas senhoras da minha terra acompanhavam à distância a missa da paróquia nas suas capelas particulares sentadas nas suas cadeiras forradas de veludo vermelho. Todas as manhãs o Chiado é uma romaria. Será uma maneira de dizer. Mas não vejo passar ninguém com a saca vermelha das esmolas para as almas do purgatório. Talvez porque o purgatório é eu estar aqui entre esta multidão frenética e ansiosa.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

7.5.09

O teu nome

O teu nome. Sim. Já era o teu nome.
Vindo do chão do tempo antigo, o teu nome cheirava a pétalas pisadas no adro de uma igreja em dia de festa numa aldeia imaginada, trazia no seu dorso o peso das grandes chuvas e o lume das longas tardes de sol entre as searas e as casas da planície.
Era o teu nome e eu não o conhecia.
Depois soltou-se, desligado da gravidade, como se fosse um pássaro ou uma canção, em ambos os casos com o destino óbvio de quem quer voar seja no espaço azul seja no coração de quem ouve cantar. Foi subindo como um anúncio luminoso, como um cartaz de cinema, como uma notícia.
Era o teu nome e eu não o percebia.
Por fim colou-se à luz dos meus dias, deu ao calendário um sinal de fulgor, fez do meu tempo um mar de referências e de memórias.
Era o teu nome e eu não o dizia.
Hoje é a chave da casa, o portão do jardim, o lugar onde me debruço para te esperar quando o fim do dia só faz sentido com o teu regresso.
Vem com ele, dentro dele, uma música suave, oboés e fagotes, trompas de harmonia e bombardinos, trompetes em surdina, clarinetes velozes, todos a dizerem que o teu nome, hoje como ontem, continua a cheirar a pétalas pisadas no adro da igreja em dia de festa numa aldeia imaginada, trazendo no seu dorso o peso das grandes chuvas e o lume das longas tardes de sol entre as searas e as casas na planície.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

5.5.09

Praça do IPO – Entra no táxi a chorar. Não é difícil adivinhar o que lhe vai na alma...
– Por favor, leve-me à João Crisóstomo.
[Procuro o diálogo, mas não o forço. Há dias, uma professora preparou a aula durante o percurso de táxi. Não a incomodei. No final da corrida, disse-me: «Obrigado pelo seu silêncio.»]
As lágrimas não param no rosto daquela mulher ainda jovem. Arrisco...
– Nota-se que está muito triste...
– Faleceu a minha mãe!
[Faço o possível para conter a emoção, mas não consigo]
– Força!
Estaciono o táxi. E choro também!