O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.8.07

Maria Inês é minha cliente assídua. Há tempos transporteia-a, gostou do perfil do taxista, pediu-me o número de telemóvel e, desde então, quase todos os dias damos um passeio pela capital.
Idosa, faz-se acompanhar por uma empregada brasileira, Graziela. Normalmente indica-me o percurso, sempre diferente, mas também acontece ser eu a escolher a viagem. A «corrida» dura cerca de uma hora. Fala imenso e baixinho e, por vezes, sinto dificuldade em compreendê-la. Um destes dias telefonou-me, à noite, a esclarecer uma dúvida que não conseguimos desvendar durante a viagem. Nada sei da vida de Maria Inês. Nem isso é importante – importante é matar a solidão daquela mulher idosa que me escolheu para viajar de táxi pela cidade.

29.8.07

Fala do gasolineiro da Sobreira a caminho dos Montes da Senhora

Fecho devagar as portas do escritório da bomba de gasolina à beira da estrada de Castelo Branco. São 23 horas e tenho todo o tempo do Mundo para me fardar. As contas foram fáceis de fazer: não tem havido trovoadas e o sistema não tem ido abaixo. À medida que me afasto da Sobreira e me aproximo dos Montes começo a ouvir o som de um conjunto que recria êxitos da música pimba. Não vejo mas sei que há meia dúzia de pares arrastando os pés no largo em frente. Alguns pares são de duas mulheres. Os homens estão mais perto da cerveja e dos petiscos. O palco onde vou actuar fica entre o silêncio da igreja e o ruído sem limites deste camião que vomita luzes e sons de discoteca. A minha música é outra. Não preciso de ser antropólogo para saber que o exercício do folclore tem algo de insólito e, em termos práticos, é uma batalha perdida. Visto a farda, subo ao palco e, como num poema ou numa oração, junto de novo o que o tempo separou. Sou de novo um resineiro, um ceifeiro, um azeitoneiro cansado e com os dedos gretados pelo frio. A resina hoje é feita por processos químicos. Já não há resineiros. Também já não há ceifeiros. As máquinas fazem hoje esse trabalho que alucinava os homens num calor de forno. E não havia água fresca que matasse essa sede antiga. Amanhã, quando manhã cedo abrir o posto de gasolina da Sobreira, já sem a farda, voltarei a ser o gasolineiro. Mas no olhar acumulo o sorrido do meu par, a pureza da música da tocata e a luz das tarefas antigas (ceifar, colher resina, apanhar azeitona) quando a vida era mais lenta e a única velocidade era a dos animais. Por isso chamam cavalos à unidade de força dos motores dos automóveis que chegam aqui mortos de sede.

José do Carmo Francisco

A morte de Eduardo Prado Coelho

Uns dias na aldeia natal, Montes da Senhora (Beira-Baixa). Sinto-me bem na casa de xisto construída pelos meus pais, onde vivi parte da infância, mas nada é como dantes, quando o meu pai era vivo e a minha mãe ainda não tinha recolhido ao lar. Sinto-me bem no refúgio beirão e ao mesmo tempo invade-me um enorme vazio, tanto mais quando se me deparam imensas lembranças: as fotos, as ferramentas que permanecem nos mesmos lugares, a adega agora sem vinho, os cozinhados da ti Martinha...

Um dia encaixotei muitos dos livros que tinha em Lisboa e levei-os para a casa dos meus pais. Os anos passaram e só agora foram abertos, graças à iniciativa da minha mulher, a Mila, que viajou para a aldeia no início de Agosto. Num dos anexos da casa, que em tempos serviu de cozinha para os animais, ela meteu mãos à obra e ali nasceu uma pequena biblioteca. Os livros estão agora arrumados em prateleiras, há uma lareira para enfrentar o rigor do Inverno, dois sofás velhinhos e umas garrafinhas de jeropiga caseira, ainda da lavra do meu pai. Deu-me prazer revisitar os «meus» livros e não resisti a trazer alguns de volta.

À tardinha, abro as janelas para refrescar a casa de xisto. Na hora de deitar, uma osga solitária vagueia pelo quarto, meio amedrontada. Foi o suficiente para a Mila não dormir, mesmo depois de o sáurio se ter sumido por um buraco qualquer... Vê-se que nunca esteve em África!

Preciso de percorrer cinco quilómetros para comprar jornais. Aproveito para tomar um cafezinho e dou conta da morte de Eduardo Prado Coelho. Li alguns dos seus livros. Em «O Reino Flutuante» e «A Palavra sobre a Palavra» ajudou-me a descobrir poetas que hoje muito admiro. Perdeu-se um grande crítico literário!

15.8.07

«Mergulho» na Lisboa nocturna, em véspera de feriado. Trabalhar à noite é muito diferente, como diferentes são as pessoas que transportamos. Gosto, apesar das armadilhas da floresta. Decido experimentar novos locais. Vou pela primeira vez ao Casino Lisboa. Dezenas de táxis numa fila que se estende «até ao Feijó», no dizer do Carlos, um veterano nestas lides fogareiras. Estou quase a zarpar, mas decido ficar. Afinal, se os outros lá estão... O Casino fecha às quatro da manhã e num ápice desaparecem os táxis. Cabe-me transportar um «chinês» para a zona do Marquês de Pombal. São viciados no jogo, estes «chineses», filhos adoptivos de um tal Stanley Ho.
Mudo a agulha para a Avenida 24 de Julho. Faço uma pausa para aconchegar o estômago com caldo verde, pão com chouriço e arroz-doce. As discotecas estão a fechar... Transporto dois jovens à zona da Costa de Caparica. Bem bebidos, mas conscientes. Entro numa quinta tipo solar, onde estão estacionados vários carros. Mas eles preferem utilizar o táxi para vir à «night» de Lisboa. Assim, sim...
O dia nasce cinzento, com salpicos de chuva de Verão. Ainda assim, é feriado e muitos lisboetas já atravessam a ponte 25 de Abril em direcção às praias da outra margem. Não tenho sono e rumo ao Hotel Pestana Palace. Uma hora de espera e o porteiro chama-me. Finalmente! Três suecas para transportar à estação de comboios de Sete Rios, com destino a Sintra. Convenço-as a ir de táxi. Afinal, pouco mais teriam de pagar...
Regresso de Sintra e dirijo-me à pastelaria Luanda, na Avenida de Roma, onde tomo o pequeno-almoço, antes do descanso. Pausa para ler os matutinos. Folheio A BOLA e sinto um murro no estômago... «Mandato de captura»? Essa não! Mandado, sff!!!