O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.11.05

Praça do aeroporto – A corrida rendeu pouco mais de cinco euros, até à Almirante Reis. A cliente, estrangeira, estranhou o preço e questionou-me: «Como é possível? Há dois meses, quando vim pela primeira vez a Lisboa, paguei 30 euros... E agora só pago cinco...»
«Se calhar, foi em dia de muito trânsito...», ripostei, sem convicção.
Não ficou convencida, a minha cliente estrangeira: «No meu país, os aeroportos são longe do centro das cidades. Não estranhei... Mas verifico, agora, que fui ludibriada...»
Limitei-me a encolher os ombros e a esboçar um sorriso amarelo. De vergonha!
É urgente dignificar a profissão. Nestes poucos meses de taxista, já ouvi estórias de bradar aos céus. Ainda assim, acredito que a grande maioria dos taxistas é formada por gente honesta e competente, sujeita a grande pressão e a alguns perigos. Mas há sempre excepções... É preciso banir as ervas daninhas, para bem da cidade e deste país «sucessivamente adiado»...

28.11.05

Praça do IPO – O cliente entrou e mostrou-me um papel com a seguinte inscrição: «Por favor, leve-me aos comboios do Cais do Sodré e passe-me um recibo.» Fiz-lhe sinal de compreensão e... arranquei. Durante a viagem, soltei frases soltas, do género «o trânsito está caótico»; ele respondia-me com o olhar.
[Há tempos, um fulano que se dizia meu amigo e não passava de um falso amigo, criticou-me por eu «tomar as dores dos outros». Talvez eu seja um bocadinho piegas, mas não consigo ser diferente. É uma questão de sensibilidade... Sofro quando os outros sofrem à minha volta; alegro-me quando reina a alegria à minha volta. Um defeito? Uma virtude? Não consigo ser juiz em causa própria...]
Despediu-se com um aceno de cabeça; despedi-me com um «obrigado e até à próxima». Na minha retina ficou o olhar daquele homem ainda jovem. Parti para a próxima corrida, mas a pensar nesta vidinha madrasta que não pára de nos pregar partidas.

Sábado para esquecer... Oficina de manhã, porque é preciso afinar a «máquina». Regresso à cidade e a primeira corrida surge já depois do meio-dia. As praças estão cheias de táxis, também não adianta andar por aí a queimar gasóleo... Hotel Mundial. Meia hora à espera. Estava quase decidido a partir, mas surge o tão desejado cliente: «Leve-me ao Montijo, sff.»
Respirei fundo, belisquei-me para ter a certeza de que estava vivo. «Ao Montijo?! Já safei a folha», pensei, sem deixar transparecer o que me ia na alma. Liguei o Mercedes e arranquei, rumo à ponte Vasco da Gama. «Sou guia turística. Vou almoçar a casa da minha sogra. O meu marido foi com o carro à revisão e não pôde vir buscar-me.»
«Abençoada revisão», pensei para com os meus botões. Toca o telemóvel da minha cliente. Indiferente à conversa, acelero na Av. Gago Coutinho. «Desculpe, mas o meu marido já vem na Vasco da Gama para me vir buscar. É possível deixar-me nas partidas do aeroporto...»
«Com certeza! Ainda estamos a tempo...», respondi com «fair play», mas ao mesmo tempo a pensar para comigo: «Tenho de ir à bruxa!»
A corrida rendeu seis euros e tal. A cliente deixou uma nota de dez e recusou-se a receber o troco. Siga a viagem!

23.11.05

Praça de Campo de Ourique – Entra no táxi desesperada. Nem me dá tempo para dizer «boa tarde»:
– Leve-me depressa junto às Torres de Lisboa! Temos cinco minutos...
– Cinco minutos?!
– Sim! Eu indico-lhe o caminho... Preciso urgentemente de metadona. Senão, tenho de comprar droga.
Segui a rota indicada, até às traseiras da Av. José Malhoa.
– Filhos da p..., já foram embora... Vamos de novo para Campo de Ourique...
– ...
– Espera uns minutinhos? Vou a casa e depois seguimos para a Meia Laranja (Casal Ventoso).
Compreendi o desespero daquela jovem de vinte e poucos anos. Quer deixar a maldita droga. Mas não é fácil...
– Vai conseguir! Força!
– ...

22.11.05

Praça do aeroporto – A brasileira está ligada à corrente. Fala, fala... É bonita, morena, tem ar selvagem, diz-se natural do Pantanal e faz-me lembrar uma «tal» Gabriela, personagem de um dos livros de Jorge Amado.
– Me leve ao Saldanha.
A viagem foi curta, a conversa comprida...
– Quero tirar um curso de jornalismo, lá no Brasil. Venho ganhar algum dinheiro...
(Entendi!)
– E onde vai trabalhar?
– No Night & Days. Conhece?
– Claro!
– Se quiser aparecer, podemos bater um papo...
– ...

19.11.05

A primeira corrida

Apresento-me na Rua de Santo Amaro, ali para os lados da Estrela, disposto a «mergulhar» na noite de Lisboa, ao volante de um Mercedes e indiferente aos perigos que me sopraram aos ouvidos. A vida está pela hora da morte, preciso de fazer dinheiro rápido e esta é uma actividade onde se entra e sai com a maior das facilidades. «Trinta e cinco por cento, das cinco da tarde às seis da manhã.»
[Vem-me à memória «A Fanga», de Alves Redol. Nesse tempo, no Ribatejo ganhava-se à jorna, quando havia trabalho; nos táxis, ganha-se à percentagem. Qual a diferença?]
Aceito a proposta. O «190» está à minha espera para uma aventura na cidade. O «colega» de dia avisa-me, disfarçadamente: «Cuidado, porque a terceira não funciona!» Ainda assim, estou determinado. Subo a Rua de São Bento, na direcção do Largo do Rato. Antes de apanhar cliente, decido experimentar a máquina. A terceira entra, mas salta imediatamente. É preciso segurá-la...
Alameda D. Afonso Henriques. Uma senhora: «Leve-me à Estrada de Benfica, em frente à igreja, sff.» As pernas tremeram. «Qual o percurso preferido?», pergunto, na esperança de ouvir esta resposta: «Vá por aqui, vire acolá, siga em frente...» Mas não: «Vá por onde for mais rápido...»
E lá fui, sempre a segurar a alavanca das mudanças, por causa daquela maldita «terceira». Às tantas, na Avenida de Berna, esqueci-me e a «terceira» saltou. O estrondo foi enorme, a cliente assustou-se... «Desculpe, mas estou a estrear-me nisto...»
Igreja de Benfica. A corrida rendeu cinco euros e tal. Que alívio! E agora? Faço inversão de marcha, paro junto ao Jardim Zoológico e tomo uma decisão: «Não trabalho mais nestas condições.» Telefono, ninguém atende. Dirijo-me à garagem, na Rua de Santo Amaro à Estrela. Estava fechada! Estaciono o carro e vou para casa.
No dia seguinte, às seis da manhã (hora da rendição), lá fui à 24 de Julho. O patrão parecia uma barata tonta, de um lado para o outro, a discutir com todos. Pensei no que me esperava e... preparei-me. «Se falas assim comigo, viro-te as costas...»
«A folha?» Tinha a resposta estudada e disparei: «Não vale a pena discutir. Fiz apenas uma corrida e estacionei o carro junto à garagem. Não está em condições...» O patrão nem me deixou terminar... «Só me faltava esta... Saia da minha vista! Desapareça!»
«Não desapareço! Está muito enganado! Vai ter de me ouvir e não lhe admito que fale assim comigo!» Ficou mudo e zarpou, a vociferar. Dei meia-volta e fui para casa.
Como é possível um homem destes ter tantos táxis a circular na cidade de Lisboa? Sem condições de segurança, nem de higiene, nem respeito pelos outros.