O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.11.06

Foi um dos primeiros taxistas com quem me relacionei. Homem educado, bom conversador, carro sempre limpo, Manuel Brazuna gosta de «fazer» o aeroporto e alguns hotéis, porque lhe falta paciência para aturar certo tipo de clientela. Transportou meio-mundo e guarda uma lista de clientes «notáveis», alguns já desaparecidos. Sousa Franco, Lucas Pires, Dias da Cunha, João Maria Tudela, Vitorino, Vicente da Câmara, João Braga, Pedro Lamy, Rosa Lobato Faria, Duarte Nuno, Vítor Melícias, Natália Correia, Margarida Sousa Uva, Sophia de Mello Breyner...
Quando lhe pergunto quais os nomes que mais o marcaram, Brazuna fala-me de Natália Correia e das «corridas» agradáveis até ao (bar) Botequim, na Graça; de Sophia e daquela viagem em que a poetisa se esqueceu do dinheiro, facultando-lhe a morada (também na Graça) para o taxista ir receber no dia seguinte; e de Margarida Sousa Uva, esposa de Durão Barroso: «É muito simpática. Estivemos 20 minutos a falar de política. Zurzi em toda a gente e no final ela estranhou:
– Ainda não bateu no meu marido!
– Se esperar mais um bocadinho...»

Quem nunca levou uma «banhada»? O Vítor é novo nestas andanças de «fogareiro» e já teve o seu baptismo de fogo. Aconteceu no bairro Santa Filomena, na Amadora. Num abrir e fechar de olhos, a cliente zarpou. Mais corrida, menos corrida, do mal o menos... Há coisas bem piores!
Quando se fala em «banhadas», logo vem à baila o tio João, um taxista veterano. Um dia transportou um jovem casal para o Barreiro. Fazia-se acompanhar de uma alcofa com um «bebé». À chegada, «ele» pediu-lhe para aguardar uns minutinhos, enquanto ia levantar dinheiro. Demorou mais tempo que o normal e «ela» foi ao seu encontro, solicitando ao taxista para tomar conta do «bebé». O tempo passava e «eles» não apareciam. Até que o tio João decidiu espreitar para a alcofa. O «bebé» era de plástico!

É jovem, a brasileira de olhos lindos, mas tristes. Apanha o táxi na Praça da Figueira, faz-se acompanhar de uma mala grande e dirige-se para o aeroporto de Lisboa. Chegou há cerca de um mês a Portugal, mas o seu destino é a Espanha.

Foi alto dirigente do Partido Socialista. Hoje milita nas bases. É professor universitário e o táxi é o seu meio de transporte preferido. Falámos de política. Às tantas disparei: «Sócrates e Cavaco estão bem um para o outro...» O meu ilustre cliente esboçou um sorriso e acrescentou: «Uma certa arrogância na maneira de fazer política...»

PS – Ofereço uma «corrida» a quem adivinhar o seu nome. Dou algumas pistas: é do Benfica, foi ministro dos Negócios Estrangeiros e vai lançar, brevemente, um livro sobre relações internacionais.

Atravesso o túnel da Av. João XXI. Paro nos sinais do Campo Pequeno. Uma mulher sai disparada do carro da frente, depois de bater com a porta. Apercebendo-se de que o táxi está livre, entra de rompante e pede-me para levá-la à Estrada de Benfica. Vem agitada e deixa escapar: «Não quero ver mais aquele cafageste!»

28.11.06

A vingança do javali

Mais parece anedota, mas não é! A estória, verdadeira, passou-se na estrada de Montes da Senhora, bonita aldeia beirã, e fez-me lembrar aquele exemplo crónico que se estuda nos manuais de jornalismo e serve para ilustrar o que é e não é notícia. Ou seja: se um cão morder um homem, não é notícia – trata-se de uma situação banal; já a inversa deve merecer tratamento jornalístico, por não ser vulgar.
Mas o personagem principal desta estória não é um cão. É uma espécie de filho-pródigo que em tempos regressou à região da Beira Baixa (por pouco tempo, porque os incêndios encarregaram-se de o dizimar) – o javali!
Andava toda a gente excitada com o raio do porco-bravo, que dá cabo das colheitas e... tem uma carne de bradar aos céus! Havia quem não dormisse noites inteiras à espera do javardo, aguardando-o nas veredas que dão acesso às hortas, em silêncio e de espingarda em riste, mas o bicho, matreiro, nunca aparecia nas noites «certas», esquivando-se como só ele sabe. E quando um era apanhado havia festa de arromba, só entre amigos, porque era proibido caçar tais bicharocos sem ser em montarias.
O Eduardo – mestre na enxertia de cerejeiras, videiras e tudo quanto dá fruto, para além de conhecer todos os segredos ancestrais das lides da lavoura – regressava a casa de moto, após o dia de trabalho. Estava lusco-fusco e numa recta que parecia não oferecer o mínimo perigo, aconteceu o imprevisto: o javali, enorme e cansado de tantas armadilhas, resolveu atacar o pacato motoqueiro. O Eduardo ficou estatelado no alcatrão com uma clavícula partida e várias outras escoriações. O bicharoco, indiferente, continuou o seu caminho, como que vingado das muitas partidas que o bicho-homem lhe pregara.
O feitiço virou-se contra o feiticeiro e o pobre do Eduardo, cheio de mazelas e com a moto escavacada, ainda lamentava: «Se ao menos conseguisse apanhá-lo! Sempre eram 50 quilinhos de carne boa e limpa...»

26.11.06

«Traumatismo ucraniano»

«Um ucraniano com cerca de 40 anos morreu (…) em Angra do Heroísmo [Açores], depois de se ter envolvido numa briga com um português, informou fonte policial. Segundo a PSP de Angra do Heroísmo, o ucraniano (…) bateu com a cabeça, sendo um traumatismo ucraniano apontado como causa provável da sua morte. A mesma fonte adiantou que o agressor foi dedito e encontra-se em prisão domiciliária.»
(In «Diário Insular»)

Depois do «traumatismo crâneo-insufálico», agora temos uma nova categoria de traumatismo – o «ucraniano». Uma relíquia!

Kasparov «vs» computador

Há determinadas categorias desportivas que teimam em «esconder-se» quando abordamos a temática do desporto na sua generalidade. O xadrez é, seguramente, uma delas, apesar de ser considerado (pelos entendidos na matéria) o jogo mais «fascinante» de todos os tempos.
«Mas porque será que aquelas pessoas ficam ali a olhar para aquelas figurinhas em cima de um tabuleiro? Não devem ser todos maluquinhos! Aquilo é capaz de ser giro...»
É vulgar ouvir este comentário. As «figurinhas» dão pelo nome de «peões», «cavalos», «bispos», «torres», «rainhas» e «reis», protagonistas principais de cativantes «batalhas» travadas num campo, em forma de tabuleiro, composto por 64 pequenos quadradinhos.
O fascínio pelo xadrez tem atravessado séculos, alimentado por estratégias, tácticas e técnicas de jogo em busca de um objectivo final: o «xeque-mate». Personalidades como Napoleão Bonaparte integraram o rol de adeptos incondicionais das virtudes do xadrez, um jogo essencialmente composto pela excelência do raciocínio e da capacidade de superar o oponente.
Mas nem por isso, e ao contrário do que seria suposto, os computadores conseguem vincar a sua aparente supremacia no domínio do raciocínio sobre o ser humano. E a partir do momento em que um miúdo de 15 anos se deu ao luxo de derrotar um campeão de nome Kasparov, é caso para acreditar que, de facto, estamos perante um jogo que... talvez seja algo mais que um simples «jogo».
Kasparov empatou com um computador potente, mas perdeu com Radjabov, um miúdo de 15 anos. Qual a explicação? «Hoje em dia existe uma ampla e acessível base de informação, aliada ao facto de estes jovens valores se treinarem seis a oito horas diárias e de terem técnicos particulares, o que faz com que a aprendizagem seja cada vez mais rápida. O que Kasparov aprendeu ao longo de anos, Radjabov assimilou em meses. As bases tácticas, estratégicas e técnicas do xadrez apreendem-se mais rapidamente e, a partir daqui, os jogadores distinguem-se pela criatividade e pelas novidades que apresentam», defende Ricardo Pais, xadrezista federado e apaixonado por este desporto «fascinante».
E quanto aos «matchs» Humano «vs» Máquina? «Estão muito mal contados. Não se percebe bem se Kasparov recebe para não 'humilhar' a máquina ou se para fazer com que esta evolua. Para ganhar é que não recebe, de certeza, pois já são vezes a mais em que tem posições empatadas teoricamente e insiste em abandonar. Está, nitidamente, a fazer render o peixe...», sustenta Ricardo Pais.

21.11.06

Aldeia das viúvas

Creio não ser novidade que as mulheres vivem mais tempo que os homens. Já li algo sobre o assunto, mas não me lembro onde e quando. Porém, se dúvidas tivesse, elas ficariam desfeitas ao visitar a bonita aldeia beirã de Monte do Trigo, no concelho de Proença-a-Nova. Só recentemente me apercebi de que grande percentagem dos habitantes, já de idade avançada, é formada por mulheres. Poderia apresentar uma estatística de toda a aldeia (é pequena), mas limitei-me a contabilizar a Rua da Sobreira: das dez casas lá existentes, sete são habitadas por viúvas. Esta realidade pode ainda ser confirmada no cemitério da aldeia – aos domingos, a percentagem de mulheres é muito maior que a dos homens.
Vultos negros vagueiam pelas ruas. Quando nos cruzamos, a conversa desagua quase sempre nos males de que padecem – os da alma e os outros. Recentemente, formaram uma pequena comunidade e rezam o «terço» ao fim da tarde. Depois, recolhem e não saem mais, porque o perigo de assaltos já não é exclusivo das grandes metrópoles.
[Gosto de visitar a aldeia, mas sou incapaz de viver lá muito tempo. Ao fim de uma semana, o lado urbano chama por mim. Mas faz-me bem respirar ar puro e dialogar com gente de outras vivências.]
As viúvas são pessoas tristes. Toda a vida amaram «aquele» homem e vivem das lembranças do passado. A religião católica é a sua âncora, mandam rezar muitas missas em memória dos falecidos.
Quando estou na aldeia, fico com a mente disponível para a reflexão. Não acredito em deuses, mas dão muito jeito... Que seria destas mulheres sem o seu deus protector?!

Trava-língua

Duda Guennes é autor da crónica semanal «Meu Brasil Brasileiro», a mais antiga da imprensa portuguesa, em «A Bola». Uma selecção dessas crónicas está publicada em livro, com o mesmo nome. «Bom de papo, Duda sabe infindáveis histórias, incluindo muitas pequenas e deliciosas histórias (...), engraçadas, invulgares, interessantes. Bem achadas e bem contadas. Confesso devoto de Nélson Rodrigues e Armando Nogueira, Duda tem uma forma peculiar de lhes pegar, uma escrita leve, solta, desenvolta. Em suma: é um magnífico cronista», escreve José Carlos de Vasconcelos, no prefácio. Não resisto a transcrever (com a devida vénia...) uma crónica do amigo Duda.

«A aranha arranha a jarra, a jarra arranha a aranha; nem a aranha arranha a jarra nem a jarra arranha a aranha.»

«O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo, que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem.»

Trava-língua (enrola língua ou parlenda) é um pequeno texto, rimado ou não, de pronunciação difícil, que pode provocar hiatos, paráquemas ou cacófatos. Pois o velho trava-língua está a deixar de ser apenas brincadeira de crianças, exercício de dicção teatral ou lição contra a gagueira para ser matéria adoptada em várias estâncias no capítulo da auto-estima. Pessoas que querem perder o medo de se expor, de errar, que têm acanhamento, timidez e vergonha de comunicar estão aprendendo a se soltar com a utilização de trava-línguas. É fundamental para o desbloqueio da expressão, para ajudar os interessados em soltar a língua e aprender a falar bem nas relações pessoais e nas profissionais.
Saindo do universo infantil, o trava-língua passou a ser usado no teatro e na expressão corporal, e logo se percebeu que era uma arma utilíssima para contornar dificuldades em se expressar. Porque, quando a pessoa se solta, a linguagem começa a fluir naturalmente. Hoje, a velha brincadeira infantil merece ser estudada no campo da linguística e da semiologia e já é encarada como uma nova cadeira: a linguistoterapia.
Tudo indica que Amadeu Amaral e Alcides Bezerra foram os autores do termo trava-língua. É também conhecido como parlenda. Serve como obstáculo ou problema para desenferrujar a língua, porque quando dita pelas pessoas com rapidez enrola a língua de quem a está pronunciando.
Muitos trava-línguas, quando pronunciados ou cantados de maneira rápida, resultam em cacofonia (sons desagradáveis ou palavras obscenas, resultantes da união das sílabas finais de uma palavra com as iniciais da seguinte). É um recurso muito utilizado por repentistas para derrotar o adversário em pelejas. Podem aparecer também em forma de quadra: ficou famoso o desafio entre os cantadores Zé Pretinho e o Cego Aderaldo. Este último improvisou um trava-língua que deixou o adversário totalmente atordoado, sem poder repetir o mote: «Quem comprar a paca cara/paca cara pagará. / Pagará cara a paca/quem comprar a paca cara...»

Jararaca e Ratinho, famosa dupla do tempo de ouro da rádio, deixaram registada essa parlenda:

«Um sapo dentro do saco
O saco com o sapo dentro
O sapo batendo o papo
E o papo cheio de vento.»


Há outras:

«Num ninho de mafagafos
Seis mafagafinhos há;
Quem os desmafagafizar,
Bom desmafagafizador será.»


E mais:

«Lá vem o velho Félix
Com um fole velho nas costas
Tanto fede o velho Félix
Como o fole do velho Félix fede.»

20.11.06

Reportagem no Jornal da Noite - SIC

19.11.06

Há tempos, a SIC fez uma reportagem com o taxista blogger. Patrícia Almeida «pegou» numa estória de «o fogareiro» e desenvolveu-a, tendo como cenário o Cabo da Roca. A reportagem foi emitida hoje no Jornal da Noite. Pela primeira vez um taxista teve honras de prime time... :) Confesso que gostei do trabalho da jornalista da SIC.
Mais habituado às palavras, reconheço, no entanto, a força da imagem. Mal a reportagem terminou, o meu telemóvel ficou entupido e dispararam as visitas a este cantinho. Até um amigo dos tempos da tropa me telefonou!
E agora, Manel? Estavas tão sossegadinho da vida... Devo uma justificação aos amigos cibernautas – fiz uma pausa nas lides fogareiras, por imperativos de saúde (nada de muito grave). Em breve espero regressar com mais estórias, ou melhor, mais bilhetes postais de Lisboa... e não só!