O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

30.3.06

Gripe aviária e outras lorotas

Mais uma estória deliciosa, escrita por Mauro Castro (taxista de Porto Alegre, Brasil), no blog «Taxitramas». Não resisto a transcrevê-la, com a devida vénia:

Nesta semana, morreu um pato aqui na Vila Intercap, em Porto Alegre, onde eu moro. De acordo com o meu vizinho, antes de bater as botas, o bicho andava espirrando e reclamando de dores no corpo. Poderá ter sido este o primeiro caso de gripe aviária no Brasil? A comunidade científica precisa de estar em alerta.
O meu colega Zé Catarina acha que esta história de gripe das aves não está bem contada. Ele diz que a morte de meia dúzia de marrecos na Europa não é motivo para pânico. Do alto de seus 81 anos, o taxista mais antigo em atividade na capital desconfia de diagnósticos apressados.
Ele lembra-se de um caso que aconteceu há muitos anos quando participava de um joguinho de cartas na casa do Latinha. A carpeta era regada por uma cachacinha curtida em um vidro cheio de butiás. Lá pelas tantas, como o líquido já havia acabado, eles resolveram jogar os butiás para um casal de gansos que o Latinha criava no pátio.
No fim do jogo, encontraram os gansos caídos no terreiro. Cada um atirado para um lado. Julgando que estivessem mortos, o Zé ofereceu ao Latinha R$ 10 pelas penas dos bichos. Ele queria forrar o banco do seu táxi que estava afundando. Fechado o negócio, depenaram os gansos ali mesmo.
No outro dia, o Latinha apareceu no ponto. Parecia muito bravo, furioso. Ao acordar, deu de cara com os gansos andando pelo pátio, pelados, ainda meio zonzos devido ao porre que tomaram com os butiás encharcados de cachaça.
Aqui na vila, depois da morte do pato, a Vigilância Sanitária agora está de olho na galinha da minha vizinha. E eu também, que não sou bobo de pegar uma gripe.

Praça do Hotel Altis-Ministério dos Negócios Estrangeiros – Reconheci-o de imediato, mas não fiz qualquer comentário. Trata-se de um conhecido embaixador português, pessoa prestigiada, num grande país da América do Sul. Também já exerceu funções governativas.
Perguntei-lhe se queria espreitar a «Visão». Já a tinha comprado, porque traz uma «breve» sobre o recente lançamento do seu livro.
Deu-se o tal «desbloqueio» entre o embaixador e o taxista. Falou-me do livro, da situação dos emigrantes portugueses expulsos do Canadá e de muito mais... Uma autêntica aula de relações internacionais, dada por um dos melhores embaixadores portugueses...

PS – Dou um rebuçado a quem adivinhar o nome do meu cliente «VIP» de hoje... Vai uma ajudinha: o livro chama-se «Uma Segunda Opinião» e tem prefácio de Jorge Sampaio...

29.3.06

Respondo a uma chamada no hotel Altis, para ir ao «24 Horas». Transporto duas jornalistas ao Vale de S. Gião, em Montachique, com espera. Mais de três horas na mansão de uma figura do chamado «jet set», enquanto as reporteres fazem o serviço. O filho do entrevistado, de 14 anos, mostra-me os pavões, os cães, os patos... E a funcionária oferece-me um cafezinho. A seguir vou descansar para o carro e, às tantas, depara-se-me um gato persa lindíssimo em cima do «capot». Manso, aceitou umas festinhas do taxista...

28.3.06

Vieram assistir ao Benfica-Barcelona. Um deles já conhecia Lisboa, o outro não. Aproveitaram a curta estada na capital para visitar os Jerónimos e o Castelo de São Jorge.
Os dois catalães estão convencidos de que a vitória sobre o Benfica são favas contadas... Perguntam-me qual o meu clube. Não escondo que torço pelo Benfica. Dizem-me que o Ronaldinho vai decidir o jogo. Não sabiam da existência de um «tal» Ricardo Rocha...; nem de um «tal» Beto, mal-amado na família benfiquista, mas que também desempenhou papel fundamental na marcação a Deco, a ponto de o luso-brasileiro, irritado, ter visto cartão amarelo e ter sido substituído.
Está tudo em aberto! Toda a esperança é legítima!

25.3.06

«Memórias de um craque»

Transportei a jornalista Rosa Ruela para o aeroporto. Sou leitor assíduo da «Visão», já li muitos dos seus textos. Falou sem rodeios com o taxista, foi agradável conhecê-la. Fim da viagem e a Rosa dispara: «Sou filha do Fernando Assis Pacheco.»
Fiquei sem palavras. Cruzei-me com Assis Pacheco, no Bairro Alto, onde trabalho há mais de 40 anos. Ele frequentava os alfarrabistas. Senti muito a sua morte. Também estive na guerra colonial, li a sua poesia, os seus livros, as suas reportagens. Admirava o homem, o poeta, o romancista, o jornalista. E a sua voz inconfundível.
Emocionei-me! Afinal, Assis Pacheco era (é) uma das minhas referências – um dos meus «craques» da escrita. E estava ali a recordá-lo, na presença da filha, também jornalista. Grande jornalista!

20.3.06

Não tem aquele ar emproado de vedeta da rádio e da televisão; é uma comunicadora nata, a conversa flui com naturalidade na curta viagem Av. da República-Av. da Liberdade.
Reconheci-a e cumprimentei-a, discretamente. Não «massacro» os clientes, quando eles não mostram disposição para dialogar. Há dias em que também não me apetece conversar; em que prefiro a solidão do meu «cockpit», alheio a tudo o que me rodeia. Não foi o caso...
Dou um rebuçado a quem adivinhar o nome desta senhora da canção (e do teatro) que ganhou o Festival da Canção de 1969, com um poema de Ary dos Santos.

16.3.06

Praça do Hotel Sheraton. Estou em último lugar e uma camioneta da Superbock não consegue passar. Arranco e dou a volta ao quarteirão, de forma a permitir a passagem do veículo pesado. De nada me apercebi, mas quando reentro na praça há uma grande confusão e muita gente a assistir. Soube, depois, que um dos elementos do «pesado» me tinha dirigido palavras insultuosas, do género «fogareiro do c...», das quais não me apercebi.
O meu «colega» (é assim que se tratam os taxistas) tomou a minha defesa (enquanto dei a volta ao Imaviz), o fulano da Superbock não gostou e insultou-o. Com quem ele se meteu... O meu «colega», corpanzil de fazer inveja a muitos boxeurs, «aviou-o» logo ali. Ficou «KO», estendido no passeio.
Nisto surgiu outro fulano da Superbock, brasileiro, armado com um ferro na direcção do meu «colega». Receei o pior e tentei demovê-lo, de longe, não fosse o diabo tecê-las... Entretanto, já o primeiro se tinha levantado, meio atordoado, mas ainda insultuoso, por sentir-se agora apoiado. Chamou «filho da p...» ao meu «colega». Só visto! O taxista nem lhes deu tempo de esboçar uma reacção. «Aviou-os» com a esquerda, valendo-lhes a intervenção de outros taxistas que entretanto chegaram.
Não costumo resolver as «coisas» a murro. Sei que fico a perder... Mas quem tem um «colega» assim, pode andar por aí tranquilo...

Domingo, oito da manhã, junto à discoteca Kremlin. Vêm bem-dispostos, brincam com o motorista. O destino inicial era Queluz, mas a meio do percurso ele pede-me para passar pela Buraca. Não estranhei, apesar de já estar alertado para o «truque»: o nome «Cova da Moura» é proibido para os taxistas. Chegados à Buraca, então sim, ele diz-me que precisa de ir a casa dos pais, na Cova da Moura, seguindo depois para Queluz.
Ela tem bom ar, inspira-me confiança; ele nem tanto. Primeiro brincou comigo, depois revelou-se agressivo nas palavras, mas nada de grave.
Sou alérgico a discriminações de qualquer espécie, mas reconheço que não posso ser inconsciente. E fui! Entrei na Cova da Moura, um dos bairros de maior risco dos arredores da capital. Senti que tudo poderia acontecer-me. Apenas o olhar da rapariga me transmitia alguma calma. Primeiro, ele disse-me para aguardar uns minutos, enquanto ia a casa dos pais; depois foi mais acima, numa rua estreita. Aguardei! Às tantas, senti movimentos estranhos na rua, grupinhos de miúdos («capitães de areia»?) a movimentar-se. Pensei: «tens de zarpar daqui o mais depressa possível!»
A rapariga, sentada no banco de trás, parecia tão amedrontada quanto eu. Disse-lhe: «Vou arrancar! Quer seguir ou fica?» Ela compreendeu o meu estado de espírito. Medo! Pagou-me os sete euros da «corrida» e saiu. Fechei as portas do «190» e zarpei rua abaixo, rumo à Buraca. Só parei na Estrada de Benfica, no Califa, para tomar um cafezinho...

14.3.06

Casal de idosos, franceses (de Paris), com ar de quem goza as delícias de uma reforma dourada. Estão alojados no Pestana Palace, um dos mais caros e requintados (dizem) hotéis de Lisboa. O destino é o Palácio Fronteira, em S. Domingos de Benfica. Chegámos cedo, a visita guiada só começa às 11 horas da manhã. Querem saber se ainda há tempo de espreitar o Parque Eduardo VII. Lá fomos... Estaciono junto à estátua de José Cutileiro, evocativa do 25 de Abril. Ele pergunta se aquele monumento está relacionado com o tsunami... Fico embaraçado e, no meu francês pouco fluente, lá lhe consigo explicar que não, que se trata de uma obra evocativa do 25 de Abril.
Notei (ou terá sido impressão minha?) que o francês não ia à bola com o 25 de Abril.
Preparamo-nos para rumar de novo ao Palácio Fronteira, quando o francês dispara nova pergunta: «Salazar não tem um monumento em Lisboa? Ou uma rua?»

6.3.06

Três taxistas caíram nas malhas da fiscalização económica. Rezam as notícias que enganavam os clientes e alguns até tinham uma geringonça que dá pelo nome de «acelerador», capaz de aumentar o preço das «corridas».
Leio as notícias e fico com a impressão de que os taxistas são todos uns malandros que só sabem enganar os clientes. Somos à volta de 3.500 na cidade de Lisboa. Aposto em como a grande maioria é gente séria que trabalha dez e mais horas por dia para ganhar uns eurozitos. Assim como uma andorinha não faz a Primavera, esses taxistas que enganam os clientes também não representam a classe.
Concordo com a inspecção das brigadas económicas. Só gostava que essas acções de fiscalização não se limitassem aos taxistas. Há por aí tanta gente graúda a precisar de ser inspeccionada...

2.3.06

Quatro dias para limpar o stress da cidade, na mais bonita aldeia portuguesa, a minha, na Beira Baixa. Revisitar amigos, espreitar o permanente entusiasmo do Daniel e da Lucinda na organização de mais um espectáculo do «seu» grupo de teatro, desta vez na bonita estalagem de Proença-a-Nova, petiscar e beber um copo de bom vinho na adega do meu tio Canhoto, comer toranjas no Vale Dinteiro, em suma, carregar baterias para mais uns tempos de «corridas» no trânsito infernal de Lisboa.
Primeiro dia de trabalho após as miniférias e logo oficina durante toda a manhã. O «190» é uma ganda máquina, é um carro de combate, mas também precisa de assistência... Ainda assim, fiz meia dúzia de boas «corridas» e fiquei sensibilizado com a situação daquela ciente, professora primária, que transportei de Benfica para o Hospital Militar da Estrela. O marido em casa com Alzheimer, o irmão internado a recuperar de trombose, as aulas de manhã... «Mulher-coragem», aquela, ainda capaz de esboçar um sorriso. Bonito!