O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

25.1.07

Não adianta fazer planos – os clientes é que marcam o ritmo diário. Gosto mais de algumas zonas da cidade, mas levam-me para outras. Hoje «carreguei» nas Amoreiras para a Embaixada de França, na Calçada Marquês de Abrantes. Ando escassos metros e surge mais um cliente para as... Amoreiras. Tento variar e zarpo em direcção à praça do Hotel Altis. Novamente para as... Amoreiras! Tomo uma decisão mais drástica – rumo ao aeroporto. Transporto duas «executivas» espanholas, vindas de Madrid, para a Rua Tierno Galvan, ou seja, para a torre 3 das... Amoreiras!!!
Rendo-me e fico na praça das... Amoreiras. Estou em primeiro lugar e vejo aproximar-se um rosto familiar. «Tu por aqui?! Então agora andas nisto?!»
Ora bolas! Lá se foi a minha reputação...

19.1.07

Estão na moda os jornais gratuitos. Agora saiu mais um, o «Diário Desportivo». Vi os primeiros números e não gostei, a começar pelo grafismo, nada atraente. O embuste é de tal ordem que a equipa dirigida por Fernando Correia nem se dá ao trabalho de redigir as notícias – faz «copy paste», altera uma ou outra palavra e... pronto! E não se trata de um caso isolado... Longe disso! Só num dia (11-01-2007), na página 2, copiaram quatro textos (!) do jogo do Benfica com a Lazio, no Dubai. De então para cá, os exemplos repetiram-se.

O texto que se segue (apenas uma parte...) foi copiado na íntegra de A BOLA on-line pelo «Diário Desportivo»:

«O Benfica esboçou alguns lances de ataque, mas experimentando sempre dificuldades para ‘furar’ o último reduto da formação romana. Quando o conseguia, denotava pouca astúcia na execução. Foi assim aos 23 minutos, quando Manú entrou na área pela direita, após solicitação de Kikin, permitindo a intervenção de um defesa (...)»

Vejamos mais um exemplo (15-01-2007), da crónica do jogo Desportivo das Aves-FC Porto. Aqui alteraram um ou outra palavra para disfarçar, mas até nisso revelaram puro amadorismo:

«Um golo de Lucho González (9 m) e outro de Quaresma (92 m) selaram a vitória do FC Porto na visita ao reduto do Desp. Aves. O dragão aproveita ao máximo o deslize do Sporting e aumenta para sete os pontos de avanço em relação ao seu mais directo perseguidor.» (A BOLA on-line)

O mesmo texto, mas publicado pelo «Diário Desportivo»:

«Um golo de Lucho González, aos 9 minutos, e outro de Quaresma, aos 92, carimbaram a vitória do FC Porto na visita ao Desportivo das Aves. Os dragões aproveitaram, assim, ao máximo o deslize do Sporting e aumentaram para sete os pontos de avanço em relação ao seu mais directo perseguidor.»

Há muitos mais exemplos, mas fiquemos por aqui. Assim é fácil fazer jornais gratuitos!

Praça dos Jerónimos – Transporto dois padres a um (bom) restaurante da Rua da Junqueira, paredes-meias com o Hospital Egas Moniz. O tema de conversa, entre eles, foi o referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez. Sim ou não – eis a questão! Ambos defendem o «não», claro, mas com argumentos primários, repugnantes. «A Esquerda devia agradecer-nos por não permitirmos que matem os seus filhos.» Registo esta frase e sinto náuseas.
Resta dizer que já transportei um dos padres numa outra ocasião, mas dessa vez a viagem até foi agradável. É conhecido pelas suas posições truculentas, ultraconservadoras.
Ainda bem que a viagem foi curta!

17.1.07

Já não me lembro da última multa. Dez/quinze anos? Hoje fui multado por atender uma chamada no telemóvel. Cento e vinte euros! A pronto pagamento!
Estou parado no último sinal vermelho da Avenida da República, antes da Praça Duque de Saldanha. Dirijo-me para a praça de táxis. Aguardo uma chamada e, instintivamente, atendo o telemóvel. Demoro escassos segundos...
Um carro da polícia transita na outra faixa de rodagem que dá acesso à Avenida Fontes Pereira de Melo. Um agente (graduado) manda-me estacionar na rotunda do Saldanha, em frente à praça de táxis.
«Mostre-me os seus documentos e os do táxi!» Tento dialogar com o polícia: «Sei que transgredi, mas não cometi qualquer crime. Estava parado no sinal vermelho e limitei-me a atender uma chamada de casa, em escassos segundos.»
Argumentos inglórios! Notei logo que estava perante um daqueles polícias da velha guarda, inflexíveis. E mudei de discurso...
«Quer pagar já e fica com a carta de condução ou paga depois, apreendo-lhe a carta e passo-lhe uma guia», questionou-me o agente, com ar ditatorial.
«Quanto custa a multa», quis eu saber. «Cento e vinte euros!», respondeu-me, babado.
Paguei a multa!
Sei que cometi uma transgressão, mesmo estando parado num sinal vermelho. Mas não foi grave e faltou ao agente uma regra de oiro – o bom senso! Há, neste momento, autêntica caça à multa em Lisboa. Estou com imensa curiosidade de ver os resultados práticos dos vários radares espalhados pela capital... Andam a brincar com a maioria dos automobilistas!

PS – Gostaria que os nossos polícias, tão «corajososos» quando se trata de multar, tivessem a mesma «coragem» para vigiar os bairros periférios de Lisboa...

16.1.07

Viagem com Ana Maria

De repente falámos de Veneza e as carruagens do Metropolitano sofreram nos meus olhos uma metamorfose, as estações ficaram inundadas e os seus nomes passaram a ser gritados em italiano pelo marinheiro fazendo sinal com o braço ao capitão para que a demora em cada paragem seja curta. Estamos num vaporetto prestes a chegar à Praça de São Marcos inundada de pombos e de japoneses com máquinas fotográficas da última geração. À esquerda o grande areal do Lido com as mesmas pequenas casas de madeira usadas nas filmagens de «Morte em Veneza». Todos os anos as pintam no princípio da época balnear. E porque são muito caras há quem viva em Veneza e as alugue para usar de manhã subalugando a amigos à tarde. Vejo nos teus olhos a imensidão do Mar Adriático sem ondas e apenas sacudido ao de leve pela passagem de um petroleiro a caminho do Sul. Vem de Trieste, do outro lado do Golfo. Oiço na tua voz as sílabas perdidas de todas as minhas viagens. Um voo nocturno para Milão, uma viagem de autocarro até Bolonha, uma viagem de comboio até Veneza. No bulício da estação de comboios de Santa Lúcia descubro a tua voz límpida, terna e alta como num passeio da Rua do Ouro em 1969. Ao fundo está não a Ponte de Rialto mas o Cais das Colunas e os cacilheiros lentos cruzando um rio triste onde chegam aerogramas amarelos com notícias de emboscadas e de feridos evacuados de helicóptero. Os aerogramas estão todos amarrotados nos bolsos dos casacos dos passageiros. Tenho de novo dezoito anos na tua voz porque a memória não mente. Entre a emoção e a verdade a memória escolhe sempre a emoção que é, também, todos o sabemos, uma forma de verdade.

José do Carmo Francisco

11.1.07

Manhã caótica em Lisboa, como sempre acontece em dias de greve no Metropolitano. Estou cansado! Apanho uma cliente para o Restelo e não hesito: dois pastéis de nata e um cafezinho. A seguir dirijo-me para os Jerónimos, mas o movimento é escasso. Não importa! A ideia é mesmo essa, descansar um pouquinho.
O Carlos, meu companheiro de trabalho do turno da noite, não dispensa a música, incluindo a clássica. Tenho sempre, no carro, CD’s à disposição para ouvir nos momentos mortos.
Estou sozinho na praça de táxis e não vislumbro clientes à volta. Está um sol agradável, ligo o leitor de CD’s e observo os Jerónimos ao som da... Nona Sinfonia.
Adormeço!
Acordo e tenho dois clientes espanhóis à espera. Sorriem, perante aquela situação inédita.

10.1.07

Transporto a jovem mãe e o filho à Liga Portuguesa de Deficientes Motores, no Casalinho da Ajuda. Transporto dois idosos de etnia cigana do Casalinho da Ajuda para o TIC (Tribunal de Instrução Criminal), na Rua Gomes Freire. Alguém muito próximo do casal está a ser interrogado, naquele momento, acusado de tráfico de droga.
Vidas difíceis!

7.1.07

Chegou ao fim o «Livro Aberto», programa de Francisco José Viegas, na RTPN. Vou sentir a sua falta! Por ali passou gente muito interessante que não me cansava de ouvir falar de livros e... não só. E, depois, aquele jeito calmo de entrevistar, de conversar... Também nós, aqui deste lado, sentimos tristeza.

Foram três anos e meio de emissões semanais, mudanças de horário e muitos autores entrevistados – cerca de duzentos e cinquenta. Pessoalmente, sinto alguma tristeza, mas provavelmente ao fim de três anos e meio o Livro Aberto já tinha cumprido uma parte da sua missão. Era recordado no final de cada ano como «o magazine de livros», mas muitos editores continuavam a queixar-se de que «não existia um programa de livros» – simplesmente, não o viam, dedicados que estavam à indústria da queixinha.
Não interessa. Acabou mesmo. Passou por lá muita gente de que gostei bastante; muitos autores que descobri e que tive de ler; muita gente que foi uma surpresa; e muita gente que me ia adormecendo em estúdio, evidentemente.
Não guardo ressentimentos por eventuais injustiças cometidas contra o programa (sobretudo por parte da imprensa, que às vezes se distraía), mas é chato ter de reconhecer que às vezes se fez um esforço (de produção, de leitura, de organização) nem sempre aproveitado. É quase sempre assim.
Faço este género de programas desde 1995, primeiro com o Escrita em Dia, na SIC, depois com o Ler para Crer, na RTP, passando por outras experiências que não fizeram de mim «um homem da televisão» mas que me ajudaram a conversar com os outros. Sei, hoje, que entrevistar é, sobretudo, estudar os temas e saber ouvir «os outros», que são as figuras da entrevista – para criar pontes e, às vezes, cumplicidades. E também criar armadilhas, evidentemente (é esse o jogo).

Francisco José Viegas

6.1.07

Uma questão de palavras

Um dos grandes problemas do nosso jornalismo desportivo actual radica na oposição qualidade versus quantidade. Em quinze anos saltou-se de três jornais trissemanários (A Bola, Record e Gazeta dos Desportos) para três jornais diários com uma média de 46 páginas cada um (A Bola, Record e O Jogo). Ora não é possível fazer todos os dias nas actuais condições o jornalismo com alguma qualidade que se fazia nos jornais antigos.
Dou apenas dois exemplos. O Sport Lisboa e Benfica foi fundado em 1908, mas festejou o seu falso centenário em 2004, com a complacência dos três jornais diários em cujas páginas nenhuma voz se levantou para dizer a verdade.
Outro dia, o Lyon venceu o Werder Bremen por 7-2 e o título de uma crónica não assinada num dos jornais desportivos diários era este: «Apetite foraz de Lyon», quando deveria ter sido «Apetite voraz de Lyon».
Não é só um problema de dislexia transposto para o jornalismo. É também a ausência de revisores, essa classe perfeitamente dispensável para alguns administradores de jornais que dizem muito compenetrados a sorrir: «Os computadores fazem isso!»
Santa ignorância, a dos administradores: os computadores podem vigiar a ortografia, mas só um ser humano com a sua inteligência e intuição pode perceber o sentido. Como aquela história da expressão «chicória» humana atribuída por um jornalista ao dr. Dias da Cunha, em vez de «escória humana» que ele tinha dito de facto.
Uma questão de palavras…

José do Carmo Francisco

5.1.07

O admirável mundo novo

Somos surpreendidos, na Internet, com textos anónimos muito bonitos, como aquele que reproduzo a seguir (com a devida vénia...), extraído do «Sublimações». Nada dispensa a leitura de um bom livro, para mais a seguir a um «ensaio de bom sexo»... Gosto, acima de tudo, da forma arejada e sensual como a «cokas» se exprime. Que pena ter interrompido o blog!

Após um ensaio – ou remake – de bom sexo, nada melhor do que um cigarro a consumir-se em longos e preguiçosos travos, que levam a amálgama de veneno e bem-estar ao mais fundo dos pulmões e da alma. Esse é o cliché a que muitos recorrem para expressar a satisfação após o prazer, a continuidade de um gozo efémero, condenado que está a finar-se no exacto momento em que se liberta, e sempre me suscitou uma mistura de curiosidade e entejo. Porém, a minha perpetuação das delícias sexuais não passa por aspirar languidamente oito centímetros de nicotina e alcatrão.
Descobri, no outro dia, depois de ser despertada por uns minutos magníficos de sexo, que a volúpia desses fugazes instantes, suspensos na eternidade da memória, pode perdurar numa intoxicação muito mais saudável, ainda que sôfrega. Estava eu ali, prostrada no meu parceiro específico, já despojada e desabitada, as mãos húmidas, os dedos entrelaçados, a respiração a tentar reencontrar o seu ritmo, o suor a evaporar-se no ar quente que embaciava os vidros das janelas, quando, de repente, o olhar acompanhou o movimento da cabeça e detiveram-se ambos na mesa-de-cabeceira. No meio de alguns acessórios de invocação a Eros e a Psique, adquiridos na Ann Summers da Brewer Street, lá estava ele, deitado, sossegado, testemunha dos nossos arrojados movimentos, dos nossos inebriantes gemidos, da nossa linguagem livre de amantes vorazes. E, num ímpeto, veio aquele desejo imoderado de mergulhar no Equador, de devorar mais cinquenta páginas de uma assentada. E foi o que fiz. Estendi o braço e resgatei o Luís Bernardo, conduzindo-o até junto do meu peito, já estrategicamente coberto com uma ponta do lençol, amarrotada e húmida.
Desde então, as minhas exigências literárias lascivas aumentaram e os livros aos quais permito entrada no quarto têm de estar à altura do meu companheiro e da partilha de afectos. Porque o erotismo contagia e é contagiado, numa espiral de captura perfeita.

Durante a «corrida» não largou o telemóvel – «spread» para a esquerda, «spread» para a direita, o homem esforçou-se imenso para tentar convencer o cliente de que as condições do «seu» banco eram as melhores do mercado.
Baixei o som da Rádio Táxis para não lhe perturbar o negócio. Falava alto, uma linguagem de burocrata encartado que estudou bem os códigos do marketing.
No final da viagem pediu-me desculpa pelo incómodo. Nem ele sabia que quando oiço falar em «spread» fico logo com urticária...

4.1.07

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há, porém, páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão, «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho qualquer sentimento político ou social. Tenho, porém, um alto sentimento patriótico. A minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, a página mal escrita, a sintaxe errada, a ortografia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente.

Fernando Pessoa

3.1.07

Hoje quase só «fiz» aeroporto. Um vaivém dos hotéis para a Portela e vice-versa. Era chegar e «carregar», na gíria taxista. Milhares de estrangeiros visitaram Lisboa; milhares de portugueses viajaram para o estrangeiro na passagem de ano. É tempo de regressar a casa. Gente de várias condições sociais passou pelo «meu» táxi. E até um futebolista brasileiro do Sporting. Chegou pela manhãzinha, cansado da viagem, e transportei-o a Alcochete. Tinha pressa, pois não queria falhar o início do treino. Paulo Bento não brinca em serviço...
Nos intervalos das «corridas», tempo para uns minutos de descompressão na praça do aeroporto (partidas). O Carlos, um taxista amigo e brincalhão, «mete-se» com a tripulação dos aviões que se dirige para o parque automóvel. Um piloto muito bem trajado de fato azul, cheio de galões (só podia ser o comandante!), chega junto de nós e o Carlos dispara: «Deixem passar o nosso colega!»
«Colega?», questionei-o.
«Sim, colega! Ele é taxista no ar e nós somos taxistas em terra...»

ESTRADA DE MACADAME – «Um momento de ternura e mais nada...»

A Estrada de Macadame é um pretexto; o que conta é a viagem dentro da memória. E tudo o que as minhas pequenas histórias possam precipitar junto dos leitores. Uma vez um grande escritor argentino (Jorge Luís Borges), cujo nome tem algo de português (os Borges de Moncorvo), escreveu: «Muitos se orgulham do que escreveram mas eu orgulho-me principalmente do que li.» As famosas memórias de Raul Brandão são um texto a que recorro com frequência como leitura de proveito e exemplo. Começa o grande escritor por perguntar: «A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o corpo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço sempre como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo.»
A infância surge assim como o ponto de partida para as memórias e o autor de «Húmus» não podia ser mais objectivo: «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equívocas ou com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada.»
Falar da infância é um bom pretexto para falar do passado. Diz Raul Brandão no prefácio das suas memórias: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas no fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida. Isso me basta, me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.»
Mas Raul Brandão não falava apenas de si nas suas memórias; falava também das grandes figuras do seu tempo, como por exemplo António Nobre. Vejamos estas palavras espantosas: «Fugiam dele antes de publicar o «Só»; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Era um Poeta. Desconheceu a vida prática. Tinha a consciência do seu valor e uma superioridade que não se podia aturar. Estávamos todos mortos para nos desfazermos desse ser à parte, desse eterno cônsul sem consulado, desse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredámos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma... Hoje é um dos poetas portugueses com mais admiradores. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque nunca misturou, como nós todos, o sonho com a vida prática. Ao contrário, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si próprio se encontrou.»
Tal como eu queria demonstrar, vale a pena ler estas memórias de Raul Brandão para concordar no fim: «A vida é um momento de ternura e mais nada...»

José do Carmo Francisco