O fogareiro

Estórias de um motorista de táxi de Lisboa

26.1.06

Temos um novo Presidente da República. Estes dias, tenho andado com uma azia que só visto! Não sei o que as pessoas vêem de positivo em Cavaco Silva... A verdade é que no centro de sondagens que é o meu táxi, cedo compreendi que o «prof.» iria ser eleito. Transportei uma senhora para Benfica. Durante a viagem não parou de me azucrinar os ouvidos, enaltecendo as qualidades do sr. Aníbal. Deixei-a falar, mas estava mortinho para que a «corrida» chegasse ao fim.
Continuo a pensar que Miguel Cadilhe tem razão: Cavaco Silva é como os eucaliptos – só gera aridez à sua volta. Quando fala, nada acrescenta àquilo que todos já sabemos. Tal como Ramalho Eanes, seu apoiante... Quando discursava, fazia-me aflição. Aquilo parecia um parto muito difícil...
Não escondo: votei Manuel Alegre. É uma figura prestigiada e culta. Com ele em Belém, sentir-me-ia bem representado. Mas há outra razão: considero que a política também se faz com o coração (estou cansado dos economistas e das estórias do défice pra esquerda, défice pra direita...). Manuel Alegre escreveu «A Praça da Canção», «O Canto e as Armas», «Alma», «Jornada de África», «Cão como Nós», enfim, livros que muito me marcaram. E o meu voto foi, também, uma forma de retribuir o muito que ele me deu.
Disse que não tenho qualquer afinidade com o novo Presidente da República. Mas não é totalmente verdade... Vi, numa reportagem televisiva, que Cavaco Silva é fanático por pastéis de nata (foi a única ideia que gravei do «prof.», durante a campanha eleitoral...) Afinal, também adoro pastéis de nata, de preferência os verdadeiros. Ainda hoje, a meio da manhã, parei o táxi em Belém, comi dois pastelinhos e bebi um cafezinho...

25.1.06

É terça-feira
e a feira da ladra
quase transborda
de abarrotada

E a rapariga
vende tudo o que trazia
troca a tristeza
pela alegria

E todos querem
regateiam
amarguras
ilusões
trapos e cacos e contradições

Sérgio Godinho

23.1.06

Praça da Gare do Oriente – É ainda jovem, aquela mãe espanhola. Vinte e quantos anos? Traz a Valéria ao colo, mais uns tantos sacos de supermercado e um garrafão de água mineral. Pergunta-me quanto custa levá-la ao hospital prisional de S. João de Deus, em Caxias. Deduzi que iria visitar o pai da Valéria, de dois anos, mas nada perguntei durante a viagem. Apenas dirigi algumas palavras à menina, que olhava para mim com aqueles olhos lindos, negros e pestanudos.
Apeteceu-me oferecer a viagem àquelas duas criaturas, mas não tive coragem. Deixei-as à porta do hospital prisional de Caxias, sem saber quem iam visitar. Nem isso importava! Regressei à cidade a pensar nos olhos lindos da Valéria, uma menina espanhola que, muito provavelmente, tem o pai na prisão. E também naquela mãe jovem que, muito provavelmente, veio de longe, a contar os euros, para abraçar o seu grande amor.

Ainda sou novo nestas andanças de taxista e não sei se aguentarei muito tempo. Vamos por partes... As estórias que escrevo em «ofogareiro» apenas servem para libertar o stress de uma actividade muito cansativa e pouco lucrativa. Começar às sete da manhã e largar às cinco da tarde para ganhar escassos euros... é duro!
Tento explorar o lado giro desta vida de fogareiro, de forma a não morrer de tédio. Sim, também sinto solidão, apesar de passar o dia a viajar pela cidade.
Há clientes e... clientes. Tenho dois muito especiais: A Zezinha (para os amigos) e o Rui. De vez em quando telefonam-me e aí vou eu ao seu encontro. A Zezinha, em vez do carro particular, prefere o táxi para as suas voltas na capital. Sempre lhe dá margem para fazer os seus inúmeros telefonemas de serviço. O Rui é diferente – as nossas corridas servem para pôr a escrita em dia. Ontem, telefonou-me. Pensei que era para ir buscá-lo à Amadora ou ao aeroporto. Afinal, foi para me dar a notícia de que vai ser operado ao coração. Senti que o meu amigo está preocupado. Não é caso para menos... Falei-lhe na experiência de um familiar que também foi operado ao coração, no Hospital de Santa Cruz. Está como novo, o meu tio João Alfredo!
Força, Rui! O coração de algumas pessoas é grande, como o seu e o do meu tio, mas de vez em quando lança um alerta. Depois de corrigida a falha, volta à normalidade. Vai correr tudo bem!
Um abraço!

19.1.06

Julgava que já conhecia Lisboa de lés a lés. Afinal, ainda sou surpreendido. Hoje, pela primeira vez, entrei no Instituto Superior de Agronomia, na Ajuda. Fiquei maravilhado com a beleza daquele local. Larguei os clientes junto ao edifício principal e a seguir fui lá acima desfrutar a paisagem sobre o Tejo. Tive a sensação de que estava na minha quintarola da Beira-Baixa... Árvores variadas, hortas, flores... e aquele cheiro característico do campo. Fiquei lá uma boa meia hora, a descansar. Até passei pelas brasas, sem que alguém me incomodasse.
Os estudantes de agronomia que se cuidem... Qualquer dia, aposto singelo contra dobrado, roubam-lhes aquele espaço de eleição para construir mais um condomínio privado...

Há um pouco a ideia, errada, de que o taxista é pessoa com fraca formação, barriguda. Há de tudo, é certo, mas não podemos generalizar. Hoje, no Centro de Saúde de Sete Rios, uma senhora ficou admirada por eu ter ajudado um cliente, com muletas, a sair do carro. Nada de especial, mas para ela aquele foi um gesto fora do habitual.
A referida senhora tomou o táxi logo a seguir e durante a viagem elogiou a minha atitude. Disse-lhe que nada fiz de especial, mas ela não ficou convencida e falou-me de maus exemplos de taxistas. «Há dias, tive com a impressão de que o taxista estava drogado...»
Contra-argumentei, dizendo que esta é uma profissão como outra qualquer, portanto, vulnerável às «chagas» da sociedade. Porém, os meus argumentos não poderiam ser muito convincentes, porque também eu já tive a sensação de que a droga circula entre alguns taxistas...

16.1.06

Praça do Lux – Às cinco/seis da manhã de domingo, os taxistas não têm mãos a medir, no Lux e no Kremlin os clientes dão um contributo importante para a «folha». Primeiro vou ao Lux, a seguir mudo-me para o Kremlin (fecha mais tarde). O único senão é que muitos clientes vêm bem bebidos e é precisa uma certa dose de paciência.
Ele fala italiano. Pede-me para os levar ao hotel Tryp, no Parque das Nações. Ela é portuguesa, bonita e com ar exótico, oriental, «ataca-o» com mil beijos. Às tantas, descontrolam-se e embatem no banco do taxista. Pedem desculpa e a viagem prossegue. Apetece-me dizer-lhes para terem mais cuidado, mas, que diabo!, também já passei por momentos assim, de euforia... E deixei-os em paz!
Pensei que ficassem os dois no Tryp. Estou uns bons cinco minutos à espera, enquanto eles se beijam e conversam baixinho. Afinal, ele sai e ela prossegue nova corrida. Algo não correu bem...
Está agitada no banco de trás. Pede-me um cigarro. «Leve-me de novo ao Lux.» Mas muda de ideias a meio da viagem: «Vamos antes para Benfica.»
A «aventura italiana» não teve final feliz...

13.1.06

O «dorme-dorme»

Hoje vou falar do «dorme-dorme», cujo nome verdadeiro é João. Tem essa alcunha devido a uma doença rara de nome complicado, que faz com que ele adormeça profundamente com muita facilidade. O bom do João é um óptimo rapaz, sempre pronto a ajudar o próximo e com um coração do tamanho do mundo. Por isso é uma figura carismática na praça de Lisboa. É viúvo e vive sozinho, os colegas são a sua família.
Nunca adormece a conduzir, mas basta parar num semáforo mais prolongado para cair num sono pesado e depois é um problema para o acordar. Várias são as vezes que os clientes saem do carro e ali fica o pobre parado até que um de nós o acorde a muito custo. Felizmente, tem consciência da doença, por isso tem sempre o cuidado de puxar o travão de mão. Pórem, quando desperta, não são raras as vezes que julga ter ainda os clientes no táxi e lá vai ele para o destino.
Quando está nas praças, é certo e sabido que adormece. Sabedores disso, fazemo-lhe imensas judiarias, tais como tapar-lhe todos os vidros com jornais, deslocar-lhe o carro para um sítio diferente de onde estava, levantar-lhe a transmissão com um macaco hidráulico para que o carro ao arrancar não saia do sítio...
Uma vez, metemos-lhe um cão vadio no assento traseiro. Depois de o acordar, dissemos-lhe que tinha um cliente no carro e que queria ir para o Restelo. Ele lá arrancou, satisfeito da vida. Passados alguns minutos, voltou ainda com o canino...
– Vejam só! O cliente fugiu e ainda por cima abandonou o cão no táxi. E agora? O que faço?
Gargalhada geral, como devem calcular... Quem ficou a ganhar foi o cão... O meu amigo adoptou-o!
É assim o «dorme-dorme»! Bom homem e sempre disposto para a brincadeira

(Com a devida vénia, aqui transcrevo esta «estória» deliciosa retirada do blog «Crónicas de um motorista de táxi», que descobri recentemente.)

Praça das Amoreiras – Bem sei que muitas pessoas gastaram as economias no Natal e no Ano Novo; bem sei que o mês de Janeiro é sempre fraquinho para os taxistas. Apesar disso, nota-se que há crise em Portugal. Hoje foi um daqueles dias em que mais valia ter ficado em casa. Ao meio-dia, ainda nem tinha feito meia folha... Quando assim acontece, recorro ao «abono de família» dos «fogareiros»: Cais do Sodré e Amoreiras. São praças que estão sempre a «pingar»...
Estou em primeiro lugar nas Amoreiras. Um miúdo entra no táxi, desempoeirado: «Leva-me à Costa de Caparica?!» O miúdo é o Francisco e tem 12 anos. «Não te importas de pôr o cinto!» Fiz o mesmo e rumámos à ponte 25 de Abril. Espevitado, o Francisco foi excelente companhia. Falou de surf, do pai que também é surfista e viajou para a Austrália, dos táxis pretos de Londres, da sexta-feira/dia 13 («acredita mesmo que dá azar?»)...
«Gosta de ser taxista?» Demorei um pouquinho a responder: «Gosto! É uma vida livre... Mas é preciso trabalhar muito para fazer uma folha decente...»
«Folha? O que é isso?» A corrida estava a chegar ao fim. Antes de ir para casa, o Francisco foi inteirar-se das ondas. «Se estiverem boas, ainda vou surfar.»
Obrigado, Francisco! Pela tua companhia e por me teres ajudado a completar a folha.

10.1.06

Racismo não, obrigado!

Ainda sou novo nestas andanças de taxista. Ainda não passei por situações complicadas. Sei de taxistas que foram assaltados, que passaram por momentos difíceis. Não aceito a discriminação; não aceito o racismo. Naturalmente, tomo as minhas precauções. Sei que um dia posso ter uma surpresa. Mas não tem a ver com a cor da pele, com a nacionalidade dos clientes.
Um grande amigo meu, do peito, é de origem africana (Guiné) e contou-me que é difícil apanhar táxi, à noite, na zona onde mora. Custa-me aceitar esta situação.
De vez em quando faço uma incursão pela noite (normalmente trabalho durante o dia). Três jovens africanos mandaram-me parar na zona de Campo de Ourique. Não recusei o serviço, mas não consegui afastar a ideia de que seria um alvo fácil para aqueles jovens, se eles viessem imbuídos de más intenções. O medo, confesso, estava apenas na minha cabeça! São músicos, vinham de tocar num bar e a viagem até Oeiras foi bem divertida. Gente fixe!
Outra situação em que não consegui evitar o medo: meia-noite, praça de táxis das Amoreiras, dois cidadãos estrangeiros entram no táxi, falam português, mas também uma língua esquisita que não consegui identificar. Fomos ao Bairro da Serafina. Fiquei à espera de uma terceira pessoa, numa rua com fraca visibilidade. Pensei: «É hoje!» Afinal, eram imigrantes romenos, foram buscar um amigo e levei-os aos Restauradores, onde ficaram a beber uns copos.
Ainda outra situação, na Estrada de Benfica. Um táxi, à minha frente, recusa o serviço a uma cidadã cigana. Não foi o meu caso. Parei e a cliente dirigiu-se à Maternidade Alfredo da Costa, onde àquela hora nascia a sua netinha.
Nada de aventureirismos, porque a noite está perigosa. Mas a violência pode vir de onde menos se espera. E não tem a ver com a cor da pele!

6.1.06

Último dia do ano. Grande azáfama nas ruas de Lisboa. Não há mãos a medir para os taxistas. A cliente entrou em Campo de Ourique. Propôs-me uma «corrida» a vários locais da cidade, com espera. Aceitei a proposta. Rua Castilho, Picoas, Av. da República, Estrela e regresso a Campo de Ourique. Afinal, sempre acrescentaria uns euros à «folha» quase completa.
Nota-se que a cliente está agitada com a passagem de ano. Saiu da «boutique» com o vestido de noite num saco comprido, daqueles que servem para transportar roupa. Demorou uma eternidade... É pessoa do chamado «jet set», escolheu ir de táxi porque tinha o «BMW a reparar» e também porque era «mais prático». Fala com uma entoação esquisita na voz, como aquelas «tias» bem conhecidas.
Mais calma (já tinha o vestido, que pelos vistos era «peça» fundamental para aquela noite...), falou com o taxista. A passagem de ano era numa daquelas discotecas «in» da capital.
Final da «corrida». Ajudo a cliente a levar a «bagagem» à porta do elevador. Antes, tocou a campainha e disse: «Não está ninguém em casa.» Despeço-me. «Não quer ver o meu vestido?» Abre o fecho do saco e mostra-mo. Não notei algo de especial, mas para a minha cliente era uma «obra-de-arte».
Fingi que aquilo era uma situação normal e preparei-me para rumar ao táxi. «Onde faz a sua passagem de ano?», perguntou-me. Pensei um bocadinho e disparei, ou melhor, inventei: «No ano passado, comprei uma garrafa de espumante e festejei com um mendigo, na estação do Cais do Sodré. Este ano, ainda não sei... Mas é bem provável que faça o mesmo...»
A cliente, meio escandalizada, deixou escapar: «Ah!!! Coitado!!!»

3.1.06

Não sou diferente dos outros taxistas, pelo menos neste aspecto: também gosto de boas «corridas». De vez em quando dou um salto ao aeroporto, a Santa Apolónia, à Gare Oriente, ao terminal rodoviário de Sete Rios, na expectativa de me calhar um bom serviço.
Um «bom serviço», entenda-se, é uma ida bem para fora da capital. Estoril, Cascais, Alcochete, Montijo, Setúbal... Não há taxista que fique indiferente a estes nomes, quando o cliente entra no táxi.
Nesta altura do ano há grande movimento no aeroporto. Gente que vai, gente que vem, não há mãos a medir. Esta era a minha terceira ida ao aeroporto, depois de uma primeira «corrida» fraquinha (Av. Gago Coutinho) e de uma segunda que também não me fez vibrar (terminal rodoviário de Sete Rios). Estou em primeiro lugar. Um casal estrangeiro dirige-se-me: «Leva-nos a Cuvilha?»
«Cuvilha?», interroguei. «Sim, Cuvilha, Castelo Branco, sabe o caminho?»
«Covilhã?! Castelo Branco?! Conheço muito bem. Sou natural dessa região...»
Não perdi mais um segundo. Malas no porta-bagagem, sintos apertados e aí vai o «meu» 190 na direcção da A1, até Torres Novas, e depois A23 até «Cuvilha», perdão, Covilhã.
O casal (à volta dos 70 anos de idade) é polaco, mas está radicado em Portugal, na Covilhã, onde «ele» é professor na Universidade da Beira Interior. Regressavam da sua Polónia natal, cansados da viagem e de uma noite mal dormida.
«Desculpe, mas hoje não somos boa companhia. Vimos muito cansados e apetece-nos dormir um bocadinho...»
«Estejam à vontade! A viagem vai correr bem...», respondi.
Estrela à vista. Neve, nem vê-la! «Só no planalto central.» Deixo os meus simpáticos clientes na sua residência, um sítio deslumbrante na encosta da serra. Despedimo-nos. Apetece-me subir, subir... Pernoitar numa daquelas estalagens lá em cima, se possível rodeadas de neve. Mas não! De novo A23, paragem para meter gasóleo, verificar o motor e comer qualquer coisinha. A viagem até Lisboa decorreu sem sobressaltos. É tempo de descansar!