Maria Inês é minha cliente assídua. Há tempos transporteia-a, gostou do perfil do taxista, pediu-me o número de telemóvel e, desde então, quase todos os dias damos um passeio pela capital.
Idosa, faz-se acompanhar por uma empregada brasileira, Graziela. Normalmente indica-me o percurso, sempre diferente, mas também acontece ser eu a escolher a viagem. A «corrida» dura cerca de uma hora. Fala imenso e baixinho e, por vezes, sinto dificuldade em compreendê-la. Um destes dias telefonou-me, à noite, a esclarecer uma dúvida que não conseguimos desvendar durante a viagem. Nada sei da vida de Maria Inês. Nem isso é importante – importante é matar a solidão daquela mulher idosa que me escolheu para viajar de táxi pela cidade.
Idosa, faz-se acompanhar por uma empregada brasileira, Graziela. Normalmente indica-me o percurso, sempre diferente, mas também acontece ser eu a escolher a viagem. A «corrida» dura cerca de uma hora. Fala imenso e baixinho e, por vezes, sinto dificuldade em compreendê-la. Um destes dias telefonou-me, à noite, a esclarecer uma dúvida que não conseguimos desvendar durante a viagem. Nada sei da vida de Maria Inês. Nem isso é importante – importante é matar a solidão daquela mulher idosa que me escolheu para viajar de táxi pela cidade.
Fecho devagar as portas do escritório da bomba de gasolina à beira da estrada de Castelo Branco. São 23 horas e tenho todo o tempo do Mundo para me fardar. As contas foram fáceis de fazer: não tem havido trovoadas e o sistema não tem ido abaixo. À medida que me afasto da Sobreira e me aproximo dos Montes começo a ouvir o som de um conjunto que recria êxitos da música pimba. Não vejo mas sei que há meia dúzia de pares arrastando os pés no largo em frente. Alguns pares são de duas mulheres. Os homens estão mais perto da cerveja e dos petiscos. O palco onde vou actuar fica entre o silêncio da igreja e o ruído sem limites deste camião que vomita luzes e sons de discoteca. A minha música é outra. Não preciso de ser antropólogo para saber que o exercício do folclore tem algo de insólito e, em termos práticos, é uma batalha perdida. Visto a farda, subo ao palco e, como num poema ou numa oração, junto de novo o que o tempo separou. Sou de novo um resineiro, um ceifeiro, um azeitoneiro cansado e com os dedos gretados pelo frio. A resina hoje é feita por processos químicos. Já não há resineiros. Também já não há ceifeiros. As máquinas fazem hoje esse trabalho que alucinava os homens num calor de forno. E não havia água fresca que matasse essa sede antiga. Amanhã, quando manhã cedo abrir o posto de gasolina da Sobreira, já sem a farda, voltarei a ser o gasolineiro. Mas no olhar acumulo o sorrido do meu par, a pureza da música da tocata e a luz das tarefas antigas (ceifar, colher resina, apanhar azeitona) quando a vida era mais lenta e a única velocidade era a dos animais. Por isso chamam cavalos à unidade de força dos motores dos automóveis que chegam aqui mortos de sede.
«Mergulho» na Lisboa nocturna, em véspera de feriado. Trabalhar à noite é muito diferente, como diferentes são as pessoas que transportamos. Gosto, apesar das armadilhas da floresta. Decido experimentar novos locais. Vou pela primeira vez ao Casino Lisboa. Dezenas de táxis numa fila que se estende «até ao Feijó», no dizer do Carlos, um veterano nestas lides fogareiras. Estou quase a zarpar, mas decido ficar. Afinal, se os outros lá estão... O Casino fecha às quatro da manhã e num ápice desaparecem os táxis. Cabe-me transportar um «chinês» para a zona do Marquês de Pombal. São viciados no jogo, estes «chineses», filhos adoptivos de um tal Stanley Ho.